segunda-feira, 21 de fevereiro de 2011

Túlio e o Terreiro.













O som dos atabaques ecoava com as firmes pisadas no terreiro. Aquela reza forte deixava qualquer corpo livre do mal. Amuletos benzidos, com muito axé, facilitavam o propagar das emanações e impediam os malefícios do dia a dia. As vibrações dos Orixás continuavam atravessando a natureza em cânticos exuberantes.

Túlio frequentava aquele terreiro desde menino. Sabia que tinha um mestre no astral, mas algo o bloqueava na conclusão de seus objetivos, sua iniciação – empreitada tão sonhada. Nasceu, foi criado, constituiu família e procriou nas proximidades do terreiro, mas inexplicavelmente, uma força o impelia contra essa vocação de batismo.

Cogitou seguir uma verve artística, não se submeter plenamente à religião. Mas Túlio apavorava-se ao se flagrar renegando suas raízes. Não pretendia ser um ingrato, filho desnaturado. Estava ligado pelo cordão umbilical com aquele chão iluminado. Sua mãe, ao sentir as primeiras contrações do parto, embora estivesse advertida pelo nascimento prematuro da criança - filho homem, disse a entidade -, foi pega desprevenida durante importante cerimônia no terreiro. A bolsa rompeu. Teve o filho ali mesmo. Aquele solo fértil, protegido pelos deuses, recebera o puro sangue da placenta materna, sendo testemunha da vinda de mais um membro da casta.

Filho único de um casal que migrou da Bahia para o Rio, chegou ao mundo prematuro, no subúrbio carioca, parto natural, primitivo, caído no chão, no coração de um templo fundado por seus ancestrais baianos, muito anteriores à geração de seus pais. Desde cedo, exibia uma inequívoca habilidade para a percussão. Batucava como ninguém jamais tamborilara no instrumento de couro animal, objeto sagrado das convocações religiosas.

Sua mãe ganhava a vida com um tabuleiro de acarajé montado nas imediações de sua casa. Com as vendas dessa iguaria baiana, complementava o sustento familiar. Já o pai de Túlio, era professor num curso de letras, lecionando no ensino superior sobre as manifestações culturais afro-brasileiras. Além de suas atividades comerciais, seus pais se dedicavam com prioridade ao culto da doutrina dos Orixás, pois tinham uma autêntica relação fraternal com essa religião, considerando-a o berço, a origem, fundamento de suas existências.

Mas aquela misteriosa energia repulsiva contrastava no cenário das rezas fortes. Apesar de ativo nas cerimônias, exímio percussionista, descendente de gente influente, médiuns respeitados, possuía uma vibração quase estéril, não sendo capaz de nenhuma comunicação com as entidades, mesmo desenvolvendo seus supostos dons com perseverança.

- Talvez eu não tenha dom nenhum, ao contrário do que minha linhagem atesta. Será que eu sirvo para alguma coisa? – Indagava-se com melancólico desapontamento.

Essas questões atormentavam-no ao ponto de entrar em conflito com seus pais. E para colaborar com as desavenças, Túlio havia se casado com uma mulher que não pertencia àquela cultura. As crenças de sua esposa divergiam das tradições cultuadas pelos sogros. Embora houvesse respeito e tolerância mútua, os choques culturais eram inevitáveis - afinal, a relação que os pais de Túlio tinham com suas crenças era tão encarnada, que a mera hipótese de afastamento representaria a morte.

Com a evolução da vida de casado – na chegada dos filhos – a tolerância entre os pais de Túlio e sua esposa cedeu lugar à radical insatisfação. Os atritos aceleraram o rompimento dos laços amistosos que uniam ambas as famílias. Sua mulher reclamava constantemente da personalidade intratável dos sogros. Ela, como mãe, tinha o direito de decidir o destino dos filhos antes que amadurecessem e pudessem assumir as próprias escolhas. Não admitia a intervenção dos sogros na criação de seus rebentos. Já os avós paternos das crianças, devido à infatigável reverência aos espectros astrais, não aprovavam aquela educação imposta pela mãe – longe das oferendas e patuás.

Eles argumentavam, na visão dos Orixás, que não haveria a necessidade de idolatrar o pecado e, sem ele, o crescimento das crianças, livre das amarras, sem culpa, teria um melhor ambiente para expressar seus potenciais. Mas irredutível, a esposa de Túlio alimentava ainda mais a negação dos ensinamentos dos sogros. Ela reivindicava, durante as longas discussões religiosas, que sem o pecado não haveria salvação. Partidária do pensamento cristão – ou o que ela achava que fosse -, repetia entusiasmada que o pecado possibilitaria, depois de muita luta, alcançar o mérito da libertação.

A discórdia familiar chegava a pontos insustentáveis, com a esposa apertando Túlio contra a parede para que ele tomasse uma decisão - entre ela e seus pais - apesar de que, independente do posicionamento do marido, ela não estaria disposta a abrir mão sobre a forma que julgava mais adequada para educar seus filhos. Não sabendo optar nesse plebiscito, Túlio tomou uma terceira opção: A fuga. Numa noite tranquila, esperou que a esposa e os filhos dormissem, já com as malas preparadas, e, sem se despedir, não visitando nem os seus pais para um último adeus, seguiu o caminho da estrada.

Ninguém mais ouviu falar de Túlio. Não se sabia sobre o seu paradeiro. Se estava vivo, se havia morrido. Nada. Nenhuma notícia. Com o passar do tempo e dos acontecimentos, a esposa, antes intransigente, amoleceu seu caráter. Cedeu às sugestões dos sogros e declarou que o casamento com Túlio, apesar de um histórico familiar contrário às batucadas, significava que sentia uma irresistível atração à cultura do tambor. Logo, ela se tornaria uma importante mãe de santo local. Ficou tão íntima dos sogros, que abriu uma sociedade com a mãe de Túlio, sendo sua fiel parceira no mercado de acarajé. Os filhos – nem se fala - foram educados no terreiro.

Túlio, desaparecido, cumpriu o seu destino despatriado. Mesmo tocando muito bem os instrumentos sagrados, não pôde se iniciar no sacerdócio. Trabalhava com afinco, mas algo dizia que aquele não era o seu lugar. Sumiu! Perdeu-se no mundo. Uns afirmavam de pés juntos que ele fora fulminado por um raio, como vingança pelo seu desprezo. Outros acreditavam que fez uma carreira de sucesso tocando o surdo um numa grande escola de samba. Mas a verdade é que ninguém tinha a menor noção sobre o que aconteceu com Túlio após a espetacular fuga, sem deixar vestígios.

Porém, no terreiro de seus pais, uma pequena plantinha foi vagarosamente germinando. Algumas pessoas, ao verem a planta crescer, quiseram arrancá-la, pois ou seria pisoteada, ou atrapalharia a evolução durante os rituais. Outros, no entanto, entendiam que para nascer uma frágil planta naquelas condições – pois a terra era muito socada nas danças – só sendo obra de seres de luz. Talvez as entidades quisessem testar a capacidade de seus filhos para cuidar e amar. Ou ainda, aquela plantinha fosse o suporte de alguma comunicação de paz ainda em segredo, na espera de ser decifrada.

A planta foi desabrochando, aumentando de tamanho, o tronco engrossando... Ficou enorme. Era uma tamarineira com frutos em favos, de polpa suculenta, com textura de goma e agridoce. Sua copa frondosa, fazia uma ampla sombra de grande utilidade, pois protegia e refrescava nos dias mais quentes. Virou uma cobertura natural. Suas folhas eram tão sensíveis que ao menor toque se fechavam. Os mais entendidos foram logo afirmando, com grande propriedade, que a tamarineira é originária das savanas africanas. Essa informação foi recebida com muito orgulho pelos parceiros de devoção.

Quando, estranhamente, recordaram-se de Túlio que já estava esquecido e dado como morto - pois havia passado muitos anos desde seu sumiço -, de imediato souberam que a tamarineira só podia ser o próprio. Ao invés de enterrado, fincou raízes debaixo da terra, no terreiro dos seus pais, crescendo como árvore viçosa. A partir daquele momento, tiveram absoluta certeza que ele havia se reencontrado consigo. Voltado para ficar. Havia descoberto a sua verdadeira vocação e utilidade. Estava com as raízes fixadas e espalhadas naquele lugar – o seu lugar.


CONTO ESCRITO por ALEX AZEVEDO DIAS.

25 comentários:

Unknown disse...

Achei bem interessante o tom que dá para o texto.... Gostei muito!

;D

Alexandre Terra disse...

mt bom, cara! Otimo texto, só achei q vc poderia dividir ele em partes para não ficar tão longo!

abraços

Vanessa disse...

Eu acho bonita essa linha de pensamento!
Felizes são aqueles que encontram o seu lugar mesmo de pois de mortos - ou supostamente.
Acredito que o espírito vive depois da morte do corpo, por isso gostei muito o tom de seu post (:
Adorei ^^

Nivaldo Gomes Filho disse...

adorei seu texto muito bom mesmo vou seguir seu blog


que o senhor te abençoe.

Anônimo disse...

Muito bom, isso sim passa o tempo!
Achei o texto bem criativo e adorei o jogo de palavras que nele cntem!

Dih disse...

Nossa. Texto longo. Muuuuuuuito longo. Mais tambem muito bonito. Comprimento e beleza proporcionais. Cara parabens. Gostei mt. serio msm.
http://projetosdeumlouco.blogspot.com/

Iguimarães disse...

Você escreve bem.
Segue minha linha.

A dificuldade nesse tema é a falta de conhecimento sobre ele. Não sei se é o seu caso,mas eu pouco entendo sobre as religiões africanas,no entanto, elas me interessam muito,inclusive já escrevi sobre esta também.
Acho que alguns pontos ficaram vagos,por incrível que pareça por ter sido explicado demais.

Grande abraço

http://euseocotidiano.blogspot.com/

diamondsfashionblog disse...

Nossa, profundo

George Luiz disse...

Interessante o modo como vc guia sua história.Parabens!
http://juventudeinformada.blogspot.com/

Alex Azevedo Dias disse...

Agradeço a leitura!
Meu compromisso, em meu estilo literário, é com elementos que introduzam o absurdo na narrativa. Como eu escrevo ficção, por mais que às vezes precise me informar para contextualizar o pano de fundo, em que a personagem ganha vida, não me preocupo em corresponder com os fatos do mundo real - muito pelo contrário. Como eu desejei escrever uma "estória" ambientada nessa religião, fiz uma breve pesquisa, para também seguir uma certa linearidade e não fugir tanto do assunto, mas, como disse antes, meu compromisso é com o fantástico, o absurdo, a pura ficção. Um grande abraço a todos.

Luis Sapir disse...

tifernuTem pessoas que deixam a vida passar e não conseguem se encontar consigo mesmo

Junior disse...

bacana o texto, um belo retrato das raizes afro brasileiras


http://universovonserran.blogspot.com/

comenta la tbm se puder

http://atordoadojr.blogspot.com/

Luis Sapir disse...

As rotinas e suas experiências ficam bonitas sobre seus olhos falados.

O tempo ganha cor e a saudade tira o brilho.

Lindo!

Victor Von Serran disse...

De devoto pra arvore....oxalá esse texto mostra tão bem as forças da afro descendencia....

forte opaco e como sempre de otima qualidade !

vai lá no cronicas que eu atualizei...sua opinião é mestra !
abraço meu companheiro de blogosfera !

michelly disse...

O texto é muito bom, e é um tema muito interessante!!!
D+!!
http://michellyraphael.blogspot.com
comente e siga!!

Daia Scarlet disse...

achei o texto muito bom, vc escreve bem, mas assim como alguem falou acima.. voce poderia dividi-lo em partes, fica mais acessivel e facil de ler.. mesmo assim ..mt bom ^^

Alex Azevedo Dias disse...

Fragmentar o meu texto em capítulos de 140 caracteres cada - atualmente a única quantidade de letras que uma pessoa consegue ler por dia - ficará tão desconexo que nem o twiter suprirá.

Samir disse...

Você redigi muito bem! Texto que atrai a atenção de nós leitores.

FabioZen disse...

Fico feliz quando encontro uma textualidade extremamente interessante como esses contos,aos quais também me dedico.Muito bom mesmo.Abrç!

Fábio Zen
http://oficinamissoes.blogspot.com/2011/02/chico-piau.html

♥ Evelin Pinheiro ♥ disse...

Bem extenso, porém interessantíssomo. Nos leva a pensar nas nossas escolhas, na vontade que temos de fugir diante de certas dificuldades...
Gostei muito. Parabéns!
Se me seguir, sigo tb!
BeijO*-*

http://www.evesimplesassim.blogspot.com/

arash gitzcam disse...

É sempre a mulher q manda sobre quais crenças predominantes terá a família, rs, nem adianta discutir...

ADILSON JORGE disse...

Li o texto e não teve como não lembrar de uma amiga minha. Parecia ela este personagem, cheia de fé e certeza que os orixás irão ajudá-la. E eu sei que vão mesmo!

Abraços

http://ceucaindo.blogspot.com/

Anônimo disse...

Você escreve muito bem, utiliza de forma adequada seu talento com as palavras, não é a primeira vez que passo aqui e tenho que admitir, sempre com uma otima postagem para se ler :)

Meus parabéns.

Anônimo disse...

E nao é que o menino voltou para sua origem?
Interessante, deixou tanto de si que mesmo qdo sumiu, estava ali.
Bravo!!!

Francisco Saldanha disse...

Já passei aqui outra vez..e parece que seu bom gosto para escrever contos so tem melhorado...abraço

WWW.POSPRETUDO.BLOGSPOT.COM