sábado, 19 de fevereiro de 2011

Eu Te Amo.
















Oswald relutava em voltar para seu ambiente doméstico. Já ficara muito tarde. Estava fazendo de tudo para esticar o tempo entre a saída do trabalho e a chegada em casa. Aquele nunca fora um ato sofrido, como passou a ser. Quando se sentia muito exigido ao realizar uma tarefa amarga em seu emprego, imediatamente se transportava, em pensamento, para sua relaxante casa na praia. Esse endereço fora recentemente adquirido, com muito esforço, adotando-o para fixar residência. O pouco tempo em que passava em casa, adorava se recostar na confortável poltrona reclinável e saborear seu aperitivo predileto.

Mas durante aquela noite, tentou ao máximo espichar seus limites temporais. Evitava a irremediável volta à sua casa – antes projeto tão sonhado, agora seu maior pesadelo.

- Tudo que eu sempre desejei está diante de mim. Vivo no que outrora fora um sonho lindo e humanamente impossível. Poucos tem condições de ter uma casa igual a minha. Invejável. Não sei qual o motivo de tanta resistência em voltar àquele lugar, ao meu lugar... – Lamentou um Oswald, com a mais radical angústia, por ter obtido tanto êxito da vida sem saber aproveitar.

Faltavam quinze minutos para as dez horas da noite. Oswald sentado, corpo inclinado, cotovelos sobre as pernas, apoiando o queixo áspero pela barba por fazer com as falanges tensionadas dos polegares - as mãos unidas, espalmadas, cuneiformes. A praça pública à qual pertencia o banco em que Oswald se perdia na imponderável meditação, cumpriria o fechamento dos portões às dez em ponto, seguindo a restrição de horário decretada pelo secretário de segurança da cidade.

- Desculpe-me, senhor. Sinto lhe informar que o parque será fechado daqui a pouco. Devo convidá-lo a se retirar. – Abordou o guarda noturno com voz temperada.

Oswald manteve-se debruçado sobre as pernas, impassível, ouvindo atentamente as instruções do guarda. Com o tronco ainda lânguido, respiração pesada, quase arfante, ergueu o atarracado pescoço. Deslocou o olhar por cima das rústicas lentes de resina – óculos de armação antiquada -, demonstrando fastio, num semblante monocórdio, e resmungou:

- Estou saindo...

O guarda meneou a cabeça afirmativamente, esboçando um leve sorriso no canto da boca, satisfeito pelo distinto cidadão ter obedecido as suas ordens. Cumprimentou-o com a formalidade que sua patente lhe reservava:

- Desejo uma noite agradável, senhor!

- Igualmente. – Respondeu Oswald impaciente e irritadiço.

Com passos desritmados, arrastados, Oswald saiu pelo acesso lateral do parque. Encostou-se à grade de ferro, no limite exterior que isola a área pública – tornando-a privada nas horas avançadas -, e enfiou as mãos nos bolsos das surradas calças sociais. Apalpou algo. Sentindo esse pequeno volume num dos bolsos, estranho objeto, parecendo um papelote amassado, pegou-o para melhor verificar a sua procedência. Ao desenrolar o papel, para sua surpresa, relembrou a quem pertencia tal característica caligrafia. Sua memória não falhara. Sabia quem era o dono daquela assinatura, mas seu nome lhe escapara, não conseguia associar o nome à pessoa.

Admirado, quase soltando um grito de espanto – reprimido por uma das mãos que levou à boca -, comprovou que a data da inevitável ocorrência pretérita, coincidia com precisão, com a data escrita no cabeçalho do bilhete. Refez-se do susto, não sem uma ponta de prazer por ter identificado o conteúdo da carta - embora algo ainda não se encaixasse bem – e conduziu o bilhete, agora adequadamente dobrado, à parte mais profunda do mesmo bolso da calça em que o encontrou anteriormente.

Oswald retomou o caminho de casa, apressadamente. Morava num bairro residencial, com aspecto de lugarejo bucólico, situado na região litorânea, um pouco distante do movimentado centro de uma grande cidade. Ao chegar à rua de sua casa, ouviu o som repetitivo de uma melodia muito conhecida, apesar de não alcançar as reminiscências de seus arquivos pessoais sobre a origem de tal canção.

Aquela música o afetara. Trouxe à tona recordações que o fizeram estremecer intimamente. Muito se esforçou, puxando dos recônditos da memória, algum mínimo objetivo fiapo de lembranças. Já estava transbordando em emoções que lhe corroíam a alma. Logo se entregou a copiosas e insistentes lágrimas. Ficou um tempo imóvel para recuperar o equilíbrio mental – mesmo com a melodia ainda em plena execução – e reiniciou o trajeto à entrada de sua casa.

Ao abrir o portão que dava para a varanda, hesitou em adentrar o umbral da sala de jantar. Oswald retornou, desviando-se do roteiro primitivo - seu ordinário endereço doméstico - e bateu em disparada em direção ao lado oposto da praia, um elegante clube da marinha do qual era sócio, pois havia se aposentado pelas forças armadas, ocupando cargos subalternos. Estivera presente em solenidades, a convite de amigos que possuíam mais nobres hierarquias no navio em que serviu, quando em missões oficiais.

Aquela paisagem era memorável. As montanhas e relevos rochosos contornando o clube estavam registrados nos painéis sentimentais da infância de Oswald. Defronte ao patamar do clube, não resistiu por muito tempo, e foi logo apresentando sua carteirinha de sócio. Um representante da administração do lugar acabou por solicitar-lhe um recadastramento na sociedade, devido ao considerável período em que ficou afastado. Oswald pediu permissão para atualizar seu título mais tarde, alegando estafa pela longa caminhada – que foi aceito pela diretoria -, deixou seus pertences numa mesinha posicionada na pérgula da piscina, e mergulhou no espelho d’água com a certeza imbatível de raras crianças.

Só aí, boiando de costas na água clorada, tremulando pelo efeito da teimosia obstinada de ondinhas artificiais, assimilou precariamente a passagem das horas. Já estava na manhã de outro dia. Os acontecimentos mais marcantes ficaram para trás, na noite anterior. Atravessou a madrugada em atribuladas circunstâncias, em duradouras atividades, meditações, e não pôde - ou não quis – ver o tempo passar. A manhã chegou. O sol raiou.

Consultou o relógio. Já eram sete da manhã. Desde as dez horas da noite passada, quando sentado no parque, fora expulso, até a hora atual, longas histórias foram revolvidas. Os reencontros, as descobertas e revelações dramáticas incorporaram o vazio da carne, incinerando as entranhas de um Oswald deslumbrado. O que deveria se manter enterrado, não mais suportava a asfixia esfacelada da culpa. Perdeu-se na modesta transitoriedade. Embaraçou-se em companhia da sucessão do tempo.

Após o revigorante banho de piscina, despertando a meninice, pensamentos infantis, reestruturou-se – ou pelo menos o suficiente, após os impactos existenciais – e decidiu, pela segunda vez, regressar ao lar, na esperança de não recuar. Ao se aproximar de casa, sua sensibilidade auditiva, já afetada, novamente captou a canção misteriosa.

Teve sensações que o remetiam a algum elo perdido de outrora, mas continuou impossibilitado de se situar espacial e temporalmente.

Aquela melodia provocava miríades de recordações. Estranhamente a música se repetia indo e voltando, sempre mantendo o mesmo trecho, como se tentasse comunicar algum código secreto inaudível. Vencendo o limite do pátio em que seu carro estava estacionado, terreno fronteiriço ao quintal de sua casa – pois uma força irreprimível o impedia de entrar pela frente, pela sala de jantar -, entrou pela área de serviço. Começou a ouvir a música num volume mais alto e com maior nitidez.

Ainda trêmulo pelo medo de uma surpreendente volta de terríveis fantasmas familiares que já deveriam estar sepultados, conseguiu localizar de onde a melodia vinha. Ficou perplexo por descobrir ser a sua sala de jantar, a origem da música.

- De onde essa música vem? Não é possível que seja de minha sala de jantar! Eu moro sozinho. Há tempos não ponho para tocar nenhum tipo de disco. E quando eu saí, certamente não deixei nenhum aparelho ligado, muito menos um toca discos. Será que tem mais alguém em minha casa? Mas quem?

Vitimado pela dúvida sufocante, no exato instante em que pisou no carpete da sala, deparou-se com a antiga vitrola repetindo o mesmo trecho arranhado de um disco de vinil. Acima da vitrola, o pêndulo do velho relógio comprado de segunda mão, num formoso antiquário – cuja história não coincidia com a vivência de Oswald – batia em sintonia com a engrenagem cardíaca de um homem também arranhado, condenado a repetir o exílio de si.

Doze badaladas. Meio dia. Por alguns minutos, esqueceu-se do bilhete dobrado em seu bolso. Embora reconhecesse a assinatura, ainda não sabia como havia parado ali, nem assimilava a correspondência da letra com a pessoa do autor. Havia uma grotesca rachadura na coerência de seu raciocínio. Tantas repetições...

- A vida é um ciclo, uma roda a girar. – Refletiu em voz alta.

Oswald sentia que estava percorrendo uma circunferência com um fosso abissal ao longo do percurso. Um impávido buraco que lhe sorria com agressiva malícia, bloqueando o infinito. Assemelhava-se à roldana que desliza avariada, sempre a tropeçar.

- Essa música... Aquela assinatura...

- Só pode ser! – Afirmou Oswald com indubitável convicção, decretando a morte da descrença.

Mas a súbita certeza que lhe invadira a fugidia essência do ser, sem que para isso fosse convidada, não tardou em carregar junto de si, uma considerável devastação.

- É isso, eu me lembro... Não sou um solteirão de meia idade. Eu já fui casado. Agora arrasto o pesado fardo da viuvez.

Numa das tensas e inúmeras discussões do casal, sempre adicionadas de intenso teor de hostilidade física e verbal, Oswald, que apreciava cantatas eruditas – som ambiente indispensável na hora do jantar – empurrou furiosamente sua esposa de encontro à antiga vitrola. Como a agulha estava em contato com a superfície do disco em movimento, o braço deslocou pelo corpo ondulado do vinil, rasgando-o em linha reta – corte abrupto, finito.

A vitrola passou a reproduzir a faixa compreendida pela linha do arranhão, sem interrupção, eternamente. Oswald recebeu um choque ao rememorar instantaneamente que a data do bilhete era a mesma data na qual se comemoraria mais um aniversário de sua esposa. A música que tocava era um álbum que continha uma apresentação da esposa de Oswald – uma virtuosa professora de piano clássico – gravada no conservatório no qual ministrava aulas.

Naquele mesmo dia especial, festivo pela passagem de mais uma primavera de sua mulher, Oswald, tomado pela sandice momentânea diante da exigência de divórcio feito pela esposa, justamente no seu aniversário, empurrou-a com extrema violência contra a vitrola – que executaria o último concerto da pianista – fechando as cortinas das interpretações musicais. Por causa do fulminante impacto, a robusta armação de mármore na qual o pesado relógio de madeira estava suspenso, para sustentá-lo, despencou, atingindo em cheio a moleira da esposa de Oswald.

A pancada causou fratura, irreversível traumatismo craniano, levando-a ao óbito prematuro, no exato momento em que o relógio bateu em sua cabeça. Transtornado pelo acidente, crime culposo, Oswald não teve condições de lhe entregar o presente que com tanto carinho escolhera. Estava condenado a vagar na amnésia dos dias felizes. O bilhete, agora reduzido a trapo, amassado no fundo do bolso, única memória viva, trazia uma simples, porém significativa mensagem:

“(23/04/1985) À minha esposa querida...

Feliz Aniversário!

De seu marido que muito lhe quer bem.

Eu te amo!

Assinado: Oswald.”


CONTO ESCRITO por ALEX AZEVEDO DIAS.

23 comentários:

Tati disse...

O texto é imensamente bem escrito, repleto de detalhes sinestésicos que dão charme à narrativa. Senti um pouco de falta do amor em si [que trás no título]. A aparente angústia do personagem e da falta de intimidade com seu lar foi de causar estranheza com o bilhete... acredito que se essa estranheza foi escrita propositalmente, cabe a mim alguns aplausos para você. Conseguiu me deixar na dúvida!

Tati disse...

Outra coisa: a assinatura "do seu marido" me parece um amor não mais romântico.
É isso mesmo?!

Alex Azevedo Dias disse...

Mas será que há amor sem isso, sem a dúvida?
O amor romântico, amor cortês, dos trovadores, só existe na condição da falta do objeto amado. Nessa categoria, que inventou a tuberculose (rs), o paradoxo do amor está na impossibilidade, na repetição da ausência, da dor. Então, como perspectiva, talvez esse amor não esteja tão distante disso. Talvez o romântico não seja nada romântico.
Obrigado pela leitura.

Alex Azevedo Dias disse...

Elaborei esse título justamente para causar essa estranheza, pelo teor familiar da frase. É o "eu te amo" das paixões humanas - frágeis e furiosas -, da morte, do seu avesso.

Rômulo Ponciano disse...

grande texto!
Não só em tamanho, mas em conteúdo principalmente.

Faça mais desses porque te seguirei!

Anônimo disse...

Intrigante a forma como a madrugada passa sem que ele se dê conta disso, assim como a fuga de algo que, aparentemente, está esquecido. Ele reluta em entrar em casa para não estabelecer o confronto com sua própria solidão, mas, ainda assim, vaga solitário noite adentro.
O desfecho arremata a história de forma fenomenal, elucidando todo o sentimento e a confusão do personagem no confronto com essa realidade dolorosa e marcada por uma suposta culpa.
Muito bom, Alex!

Lua- Eu Crio Moda disse...

Acho q muita gente se sente como o personagem, parabens pelo texto.

Participe da campanha contra verificação de palavras nos comentários :)

edsaon disse...

texto bem profundo,ta de parabensxD

ADILSON JORGE disse...

Muito interessante! Sou uma pessoa apaixonada por contos e fazia parte de uma Oficina que tinha aqui na minha cidade. Bons tempos.

Abraços
www.ceucaindo.blogspot.com

Macaco Pipi disse...

FORTE HEIN?!

Sandro Mangueirense disse...

Belissimo conto!

Intrigante, faz-nos pensar sobre sentimentos.. gosto de coisas assim!

http://estacaoprimeiradosamba.blogspot.com/

Luciano Castro disse...

Nossa!! é eu que me sinto lisonjeado de ler palavras tão animadoras que com toda certeza, só alimenta a minha fé, de que tudo vai dar certo, muito obrigado mesmo, abraços e semana abençoada!!!!!!!

Vanessa Souza disse...

Só o começo já é desolador...

http://www.vemcaluisa.blogspot.com/

Paulo Cheng disse...

Apesar de longo, muito bem escrito. Parabéns pelo blog, vc escreve muito bem.

Juliana Trinci disse...

Adorei muito o blog. Adorei os textos, daqueles para gente ler como se fosse um livro.
Parabéns
meu blog: http://agiteantesdeusar2.blogspot.com/

Paulo Cheng disse...

KARA, EXCELENTE TEU BLOG, MUITO BEM ESCRITO E MATÉRIAS BEM LEGAIS, PARABÉNS PELO BLOG.

Anônimo disse...

Nossa muito lindo o texto,fiquei com peninha dele,achei meio triste o final,fiquei imaginando a mulher morrendo ao som daquele piano!Parabéns mais uma vez!Bjks

Net Esportes disse...

ótima narrativa ... sem dúvida um excelente texto.

Anonymous disse...

Nossa!! Você escreve muiiiito bem!!
Apesar do texto desanimar inicialmente pelo tamanho, a narrativa o torna muiito interessante, não importanto mais o quanto se semora pra ler.
Muitos se sentem como o personagem, garantindo um bom público..
Sucesso no blog!!

Rômulo Ponciano disse...

Já havia comentado aqui. Mas passando de novo...

Gostaria de ver outros posts como esse.


Blog: www.socconnect.blogspot.com

Unknown disse...

A angústia é a marca mais interessante do texto.. bem elaborado!
Gostei!

;D

Anônimo disse...

Que bom gosto. Belissima, explanação.
É um convite ao "mundo real".
Vejo, como os atos impensados (ou pensados), levam a consequecias indeléveis e dores aterradoras.
Entao está lá o fantasma, evocado pela ignorancia e pela dor da culpa por ele provocados.
Parabéns.

Jefferson Reis disse...

Intenso, posso dizer. Também angustiante. Não via a hora de chegar ao desfecho e entender do que se tratava o conto. Ele ficou com problemas de memória por se sentir culpado pela morte da esposa. Estou certo? Em alguns momentos achei que se tratava de um fantasma, vagando pelos lugares onde viveu experiências fortes. Ainda estou com esta impressão.