sexta-feira, 4 de fevereiro de 2011

Cafés com Leite.















- Estou cansado de ser café com leite! Assim eu não brincarei mais...

- Ué?! Você começou a brincar, por acaso?

- Claro que estou brincando!

- Ah é?! Você é bebê ainda. Faz xixi nas calças. Só atrapalha...

- Não atrapalho nada, tá?!

- Paulinho, quando você aceitar perder, brincar na moral, aí deixará de ser café com leite.

- Mas o que é café com leite, afinal? Minha mãe sempre me dá café com leite de manhã. Mas eu detesto café, mesmo com açúcar. De leite eu até gosto, mas não sou criança mais para ficar tomando leite, né?

- Ah, Paulinho! Dá licença, vai! Sai pra lá! Dixe de ser pedra no meu sapato, pô!

- Oh, Jão! Você é bestão, é?! Mamãe mandou você cuidar de mim, porque sou menor do que você. Se me impedir de brincar aqui, contarei tudo a ela!

- Que bichinho chato! Cacete! Tá legal... Continue brincando com a gente. Mas como você não entende as regras do jogo, nem aceita perder, ficará como café com leite mesmo.

Jão e Paulinho eram irmãos. Também tinham uma irmã mais velha que morava com o marido, em outra casa. Jão tinha 11 anos, e Paulinho, apenas 5. Os pais dos meninos estavam separados há 3 anos. Nessa época, a filha mais velha, incomodada com a situação familiar caótica, aproveitou a ocasião de estar namorando com um rapaz declaradamente apaixonado, e que tinha também algumas economias, e resolveu se mudar com ele, unindo-se maritalmente.

O pai, nesse tempo, já estava de compromisso sério com outra mulher – que também tinha filhos de outro casamento. Ele os adotou com exclusividade de direito, como se fossem seus únicos filhos – o que o fez esquecer dos seus filhos legítimos, frutos de um duradouro e feliz relacionamento, mas que terminou em divórcio.

A mãe, para sustentar a casa e os dois filhos, apesar de receber uma razoável pensão do ex-marido – coisa que fazia, condenado a cumprir por lei, considerando o suficiente para eximi-lo das obrigações paternas -, precisava exercer uma árdua jornada de trabalho. Com isso, ficava impedida de atender integralmente os filhos em suas necessidades afetivas.

Jão e Paulinho passavam a maior parte do dia com uma improvisada babá, amiga da mãe dos meninos. Ela a conhecera quando foi contratada por uma policlínica comunitária, no setor de serviços gerais. Essa mulher, solidarizando-se com a aflição da amiga, mãe dos meninos, por ser impossível se desdobrar entre os afazeres domésticos e trabalhar fora, ofereceu sua disposição em ajudá-la.

Além da visível generosidade, havia também um motivo mais íntimo, implícito na oferta. Como essa mulher veio de uma região bem distante, outro estado, à procura de emprego, estava sem recursos financeiros e não podia se submeter aos exorbitantes preços para alugar um imóvel, ela sugeriu cuidar dos meninos em troca de moradia.

Como as duas amigas alternavam seus expedientes no posto de saúde, que funcionava em sistema de 24 horas, a mãe trabalhando durante o dia, e a outra só à noite, não haveria desencontros no cuidado das crianças, nem prejuízos para ambas. Apenas as possibilidades de vantagens e de benefícios eram esperadas desse acordo entre as duas sacrificadas mulheres, embora sempre restasse um aperto no peito.

A única recomendação que a mãe fazia aos filhos, quando estavam entregues à improvisada babá, era que houvesse cooperação entre eles, talvez um auxílio mútuo, para não sobrecarregar a amiga. A mãe argumentava que Jão, por ser o mais velho, deveria se comportar como o homem da casa. Desse modo, os artifícios maternos visavam o frágil ego do menino, massageando-o, para fazê-lo se identificar com o lugar de homem feito e assumir precoces responsabilidades - embora seu pai não representasse melhores exemplos. Segundo a mãe, Jão deveria tomar conta do seu irmão mais novo, o Paulinho, não perdê-lo de vista, sempre mantê-lo presente, participando das mesmas atividades.

Jão, a princípio contrariado, resistiu em ter que brincar com o pirralho de seu irmão. Ouviu primeiro os códigos de sua faixa etária, pela vergonha que sentiria em cuidar de um bebê, perante o seu grupo de outros meninos de 11 anos. Mas depois acabou cedendo às palavras maternas. Passou a se orgulhar por ocupar o lugar do homem da casa – embora quisesse mesmo era ocupar o lugar do homem para sua mãe. Ficou vaidoso principalmente pela possibilidade de ganhar o estatuto de filho responsável, alegria da mamãe – o filho preferido!

Mas o sentimento de regozijo de Jão, por ter agradado sua mãe, logo foi substituído por uma insatisfação sem limites, quando pôs em prática os cuidados com o irmão mais novo, vigiando-o. Paulinho estava se intrometendo em assuntos de gente grande – que só meninos de 11 anos conhecem – ameaçando contar à mãe todos os “segredos” que ouvia das conversas dos adultos de 11 anos que ali estavam. Aqueles debates eram confidenciais, proibidos para menores de 11 anos e para os pais.

- Quero ir embora, Jão! Você falou tanto de café com leite, que eu fiquei até com fome...

- Não pode! Você sabe que a mãe pediu para que eu cuidasse de você, não sabe?

- Será que a tia comprou aqueles biscoitos recheados para o lanche?

- Você acabou de almoçar, Paulinho! Toma jeito, menino!

- Hi! Ta parecendo até a mamãe...

- Estou parecendo nada! Sou homem! O homem da casa.

- Se existe um homem da casa, só pode ser o pai. Mas ele não está mais em casa...

- É... Mas na falta do pai, o homem da casa sou eu!

- Eu também sou homem, pô!

- Você é pirralho, isso sim!

- Sou nada, tá?

- Você é um nada mesmo, chato!

- Vou contar tudo pra mamãe! Vou falar tudo que eu sei! Você e esses seus amiguinhos ficam aí correndo um atrás do outro, dizendo que são polícia e ladrão! Você só anda com bandido. E não me deixa ser nada! Eu só fico correndo para um lado e para o outro, pegando todo mundo, sem ser polícia nem ladrão!

- Eu já disse! Você só serve pra ser café com leite.

(...)

- Crianças! O café já está na mesa. Venham logo. Sua mãe virá hoje mais cedo. Ela mandou dizer que está trazendo biscoitos e uma caixinha de leite integral, que vocês tanto gostam de beber gelado. – Disse a dedicada babá improvisada.

Os dois meninos ficaram satisfeitos com a vinda da mãe, e esse acontecimento seria muito festejado.

Com o tempo, Jão percebeu que seu irmão mais novo nunca fôra neutro nos assuntos familiares. Apesar de ser muito criança ainda, por ser 6 anos mais novo do que ele, sofria em silêncio com a separação dos seus pais. Mas sozinho, sem a ajuda de ninguém, com os seus 5 anos de idade, nas brincadeiras como café com leite, sendo vigiado pelo homem da casa, seu irmão mais velho, podia elaborar o afastamento paterno. Aquela brincadeira, junto à sua condição de café com leite – um alimento que às vezes faltava à mesa – reproduzia o cotidiano da vida. Corria sem cessar atrás de todos, de polícia e de ladrão, sem conseguir pegar ninguém, pois seus toques não tinham valor no jogo. Paulinho estava assimilando o luto, mesmo de forma lúdica. Passou a entender, depois de mais velho, que café com leite, todos nós somos. Vivemos correndo atrás de nossos ideais, mas eles sempre escapam. Quando nos aproximamos, mais distantes ficam. Quando o tocamos, nossos atos não são válidos, pois eles nunca estiveram lá.

Com essa lição, ensinada por sua incômoda posição de café com leite, Paulinho não enxergava mais a saída do pai como um abandono da família. O pai era só uma pessoa, e não um objeto ideal que poderia ser guardado. Mesmo sendo tocado, nunca seria o suficiente para tê-lo em suas mãos. O pai também era café com leite – mas ele não via sua condição, não via a si. O pai era o lado infantil da história. Já o seu filho, o homem da casa.


CONTO ESCRITO por ALEX AZEVEDO DIAS.

13 comentários:

Nathacha disse...

Caramba ...belíssimo texto
a princípio me assustei com a extensão , mas a leitura estava tão leve e agradável que nem percebi!
http://medicinepractises.blogspot.com/

Jefferson Reis disse...

Conto muito bem escrito, por sinal. O autor descreveu todo o contexto familiar e como este mesmo contexto e ações por parte dos membros do grupo podem acarretar nos papéis e valores de todos na família. Muitas vezes temos que assumir funções que não são nossas para o bem de pessoas que amamos. Em outras, somos obrigados a viver em um ambiente que não é equivalente ao ambiente propício para nosso desenvolvimento dentro de nossa "fase" ou "estágio", digamos assim.

Anônimo disse...

Você escreve bem, Alex, mas achei que falta melhorar o encadeamento das partes do conto. Além disso, ele começa legal, mas quando vc vai falar sobre a situação da família, da mãe que é ajudada pela colega, fica parecendo um texto jornalístico. Esse "miolo" poderia carregar um pouco mais de teor literário.
Abço!

Millena disse...

Excelente o conto.As pessoas teimam em assumir coisas das outras pessoas.

Alex Azevedo Dias disse...

Obrigado pelos comentários! Reescrevi alguns detalhes para melhorar a dinâmica da leitura. Abraços.

Anônimo disse...

Que conto, Alex! Me identifiquei demais com ele, talvez por essa ausência de pai seguida da sofrida superação, que você descreveu tão bem.
Quantas coisas a gente esconde na neutralidade... Pelo menos busca esconder!
Beijo.

Iarinha disse...

É Alex as vezes passamos um tempão sendo o cafe com leite da historia e nem nos damos conta!
beijo

Naby Lima. :P disse...

Excelente parabéns, você tem muito talento para escrever.

Sucesso.

... disse...

Ah, no sentido da inocência: Como eu queria ainda ser café com leite em algumas situações!

Anônimo disse...

Bem elaborado.
Essa "coisa" de cafe com leite vai além do que pensamos.
Um dia eu fui cafe com leite...rs
Parabens, gostei !

Urbano disse...

Cara, a reação do menino de orgulho de supremacia e em seguida a graça indo embora pelas dificuldades de cuidar do irmão mais novo foi perfeita! Ótimos diálogos também. Essa história poderia ter sequência. Somos café com leite sempre em uma área a vida toda. Abs!

Gata de Tiara disse...

Acho que tudo na vida vai bem além do que pensamos... Mas é estranho como muitas vezes não paramos pra pensar nas coisas a fundo e acabamos perdendo uma lição que estava bem na nossa frente.

Pobre esponja disse...

Essas supostas inversões de valores acontecem mais do que aparenta.

abç
Pobresponja