segunda-feira, 31 de janeiro de 2011

À Mesa do Café.














No fogão à lenha da rústica fazenda, o café estava sendo preparado num adorável artefato culinário. Daquele bule de cerâmica, exalava um aroma inconfundível de café fresquinho, pronto para servir. A colheita era realizada num cafezal exclusivamente de subsistência da fazenda. Os grãos, submetidos à rigorosa seleção, só eram separados para torrefação e moagem obedecendo às regras de qualidade para o exigente paladar da família.

No instante em que a mãe inclinou o bule, para que o líquido viscoso escorresse até à xícara de porcelana, uma suave fumaça serpenteou do bico do artefato, exalando aquele inebriante aroma de café quente. O primeiro contato do café com a xícara liberou lembranças de momentos felizes que se repetiam sempre que a bebida, de origem etíope, era generosamente servida à mesa.

Tudo transcorria na mais perfeita ordem e calmaria, excetuando um detalhe... Na xícara do pai, um movimento estranho foi notado. Ele achou indelicado chamar a atenção dos demais pelo evento inusitado que ocorria ali, no conteúdo de sua apreciada bebida. O pai não queria ser estraga prazeres. Não queria interromper a harmonia do horário do café, em que toda a família estava reunida. Mas algo se debatia na intimidade de sua pequena xícara.

Tentou empurrar com a pontinha do dedo a coisa que boiava na superfície do seu café, mas quanto mais procurava afastá-la sutilmente, num empenho para jogá-la fora no pires, mais se frustrava. Aquela coisa afundava a cada tentativa, mergulhava com força para o fundo, ficando impossível de retirá-la. Apreensível, apesar de se esforçar em esconder seu temor, para não perturbar a paz familiar, pois já estava sendo alvo dos olhares curiosos de seus filhos, tomou uma golada com vontade, fingindo que nada acontecia de irregular àquela mesa. Deus sabe o sacrifício que o pai fez, extraindo forças de suas entranhas, para simular contentamento, mesmo sendo protagonista da mais esdrúxula cena.

Por ostentar bigodes frondosos, símbolo máximo de virilidade – também servindo como filtro natural das impurezas do que deglutia – notou que após o primeiro gole, carregava um peso extra entre o nariz e o lábio superior. Sentiu uma súbita coceirinha em seu másculo traço facial. Algo não corria bem. Olhou para o conteúdo de sua xícara, e nada mais encontrou além do café. Mas em seu bigode, algo se mexia.

Disfarçadamente, levou seu dedo indicador, com leveza, aos seus fartos pêlos negros e brilhantes – encerados e engraxados – na esperança de espanar a ameaçadora criatura que insistia em se mexer, embaraçada na cabeleira. Sem sucesso na empreitada, colocou em prática seu outro plano – soprar obstinadamente com as narinas, na intenção que a coisa voasse de seus bigodes e não lhe atrapalhasse mais o café em família. Mas o seu filho, espantado com a cena do seu pai fungando enfurecidamente – para fora, diga-se de passagem – lançou a pergunta sem titubear:

- Pai! O senhor está passando mal?

O pai, que não esperava estar sendo observado, muito menos por esse filho – que se distraía com bolachas e bolinhos – levou um susto tão grande que se engasgou. Com o chamado repentino do filho, ficou desorientado por alguns instantes, até recuperar novamente a consciência sobre o que estava acontecendo.

- Nada, meu filho... Volte a tomar seu café! – Disse o pai, respirando fundo.

Logo após ter respondido ao filho, sentiu uma irresistível vontade de espirrar. A coisa estranha havia entrado em sua narina esquerda, e se alojado junto à mucosa, grudada num comprido pêlo nasal. A coisa começou a mexer e se remexer lá dentro, sem parar. O pai já estava tendo um troço, suando frio, ainda tentando disfarçar o que ocorria com ele - quase desmaiando de nervoso. Novamente escolheu o dedo indicador para trabalhar em sua missão de limpeza, mas uma coisa é esfregar os fios do bigodes, outra coisa é enfiar o dedo no nariz em público, sentado com sua família, à mesa do café.

Teve a ideia de colocar uma mão na frente do rosto, para formar uma barreira, e, assim, pôr mãos à obra – e dedo. Ao perceber que sua barreira manual funcionou ao contrário, atraindo mais os olhares alheios ao invés de afastá-los, com o ardil de um criminoso flagrado em delito, exigiu que todos voltassem rapidamente ao café. Conseguiu impor respeito e cumpriu a performance masculina, para nenhum digno patriarca botar defeito.

Mas o mexe e remexe continuava em seu nariz. A coisa se deslocava para as partes mais internas de sua cavidade nasal. Aquela coceira já estava insuportável. A agonia era tanta, que o pai começou a acompanhar o ritmo da coisa que se mexia em seu nariz, ensaiando um rebolado na cadeira. Foi um tal de mexe e remexe na cadeira que os seus familiares imediatamente pararam de tomar o café, ficando perplexos com a visão patética que se desenrolava diante deles. Logo, o pai se levantou, pulando, e seguiu com o mexe e remexe no chão. Os demais, boquiabertos, com os queixos caídos, não viam nem mais o café. Alguns, ainda segurando suas xícaras, sem perceberem, deixaram entornar o café na toalha de mesa novinha.

De repente, o pai foi vítima de um espirro monumental, que lhe arrancou até as sobrancelhas. Com a violência do espirro, o intruso foi expelido de sua narina, indo se depositar em algum lugar em que a visão humana não alcança. Sem dar a menor importância aos olhares estupefatos que o seguiam, o pai, sem fazer cerimônia, voltou ao seu lugar na cabeceira da mesa, pegou o bule de cerâmica e se serviu da deliciosa bebida matinal.

Como tudo se reequilibrou, o pai pôde se dedicar ao único elemento que lhe habitava os pensamentos: O café. E assim, continuou pensando sobre os grãos que colheria no dia seguinte do cafeeiro - se seria arábica ou robusta – como poderia moê-los e o tipo de torrefação, talvez uma média, para deixar a textura mais elaborada e o paladar sempre apurado.


CONTO ESCRITO por ALEX AZEVEDO DIAS.

sexta-feira, 21 de janeiro de 2011

Pedro Bege.

















Pedro era bege. Nasceu bege. Foi registrado, batizado, tinha nome de pai e de mãe na certidão de nascimento – mas era bege – estranhamente bege. Rezava uma lenda que quem descobrisse suas diferenças antes da puberdade, ainda poderia reverter a maldita condenação de ser único. Mas Pedro só refletiu sobre ser bege com mais de doze anos, embora intimamente já tivesse descoberto desde a primeira infância. Foi quando um colega de classe desferiu uma pergunta rasteira – Por que você é bege?

Não sabendo responder, Pedro ficou com um vazio entalado na garganta. A partir daí, ele empreendeu uma verdadeira epopéia para conhecer suas referências naturais, míticas, origens ancestrais.

Na escola, Pedro era observado com espanto e curiosidade, inclusive pelas “tias” e professores. Ninguém nunca tinha visto um menino bege. Estudavam sobre etnias, antropologias, fenótipos, mas jamais chegaram a conhecer tal fascinante exemplar. As crianças, em biologia, já sabiam identificar a taxonomia, classificar raças e subespécies, todavia não compreendiam como encaixar alguém da cor bege. Em anatomia todos tiravam 10, mas e aquela cor? Existia?

Alguns diziam que Pedro tinha cor de burro quando foge. Mas Pedro nunca teve um burro, muito menos havia fugido. No entanto, ele pensava – Será que burro quando foge é bege? Se assim for, será que burro fugido sou?

Pedro, como qualquer ser humano, era bípede – embora os gansos, marrecos e aves em geral também o sejam. Por ser bípede e humano, Pedro tinha duas pernas, apesar de também ter duas patas, que criava no quintal de sua casa. Essas patas eram brancas, e não beges como seu dono. Pedro construiu um galinheiro com tábuas ocas, úmidas, abandonadas num terreno baldio – tocas de insetos e fungos. Ele sabia que aquele galinheiro improvisado não era para patas, e sim galinhas, mas não se importava com nomes.

Diferente dos demais, o galinheiro de Pedro tinha duas patas brancas. Quando o dia ficava muito quente, enchia uma caixa d’água de amianto, para suas patas brancas nadarem e se refrescarem. Por ter uma pequena rachadura, Pedro deixava a torneira aberta, com uma mangueira enroscada, continuamente, para manter a caixa d’água cheia. O tanto de água que entrava era o mesmo tanto de água que saía.

Por essas peripécias, que sua mãe traduzia como desperdício, Pedro recebia bofetões em seus raquíticos braços beges, para que aprendesse a lição. Era somente nesses instantes que ele testemunhava o fenômeno do bege virar vermelho. As marcas de dedos da sua mãe esculpiam maravilhas coloridas. Pele vermelha! Sou apache! – dizia satisfeito.

As punições que a mãe julgava corrigir a má criação do filho, acabaram tendo um efeito inverso ao desejado. Pedro passou a forjar situações que contrariavam sua mãe, só para conseguir os tabefes milagrosos que refletiam a recém descoberta capacidade de mudar de cor. Às vezes ficava roxinho. Depois amarelinho. Mas era só a mancha sumir, o contraste desaparecer, que a tragédia retornava, castigando-o, sem titubear. Voltava a majestade bege a reinar absoluta. Melancolicamente bege.

O engenho construído por Pedro funcionava com uma simples repetição. Ao contrariar as ordens maternas, desobedecendo-as, e... Olha lá o índio apache novamente – exclamava ele com visível euforia. Sou camaleão! – Disparava Pedro não se contendo de alegria.

Não! Camaleão não tem cor. Camaleão é mudança pura de cor. E se fosse para ter cor, seria verde, é um réptil! – Concluiu Pedro, reconhecendo a cruel verdade de sua origem e destino. Era um menino bege. Menino e bege. Pateticamente bege! E embora tentasse aplicar sutis beliscões em seus próprios braços, não resultou no menor efeito. O bege só ficava ora um pouco mais claro, ora um pouco mais escuro, mas ainda assim... Bege!

Quando cresceu, inventou uma maneira de aliar sua peculiar característica às atividades lucrativas. Fazia política bege. Aderia a movimentos artísticos em que o bege predominava como símbolo de vanguarda. Criou compostos químicos beges, revelando as revolucionárias propriedades medicinais da cor. Pedro ficou tão famoso no campo das pesquisas científicas que adquiriu, por projeção dos fiéis trabalhadores da empiria, um inquietante aspecto magnético, curando todos aqueles que temiam ter perdido a crença no poder da ciência.

Desse modo, Pedro absolvia-os de serem amaldiçoados por um tipo de sinédrio científico, devido aos julgamentos de uma das faltas mais graves: A heresia – que consistia em negar, pela falta da fé, a suprema e única verdade abençoada pela Lei das aferições e experimentações.

Mesmo com todas essas distintas regalias que o tempo lhe concedeu generosamente, Pedro rememorou, na fatalidade latente de um lapso, por carecer de respostas lógicas, a traumática pergunta que um colega lhe fez em sua meninice, quando contava um pouco mais de 12 anos. Assim, sua carreira de sucesso foi interrompida.

- "Por que você é bege?"

Perante o regresso avassalador de tal questão, mesmo tendo sido formulada sem aparente hostilidade, numa inocente curiosidade de criança, Pedro foi estremecendo do dedão do pé ao mais longo e inalcançável fio de cabelo. Olhou desconfiado para suas mãos, na esperança de uma incorporação camaleônica. Havia mudado radicalmente de humor. Mas o bege continuava lá, inalterado.

Constrangedor e deprimente bege!

Pedro permaneceu lá, parado, estatelado. Voltou ao instante exato em que tal pergunta fora proferida pelos lábios infantis, ferindo-o em suas referências racionais, tão caras ao já adulto menino bege.

Foi aí, nessa circunstância, na falta de respostas à pergunta existencial, que Pedro tomou uma medida drástica. Como ainda não conhecia a praia, pois vivia em regiões montanhosas, mesmo tendo aproveitado rios e cachoeiras, resolveu viajar para o litoral. Lá chegando, novamente constatou a brutal diferença que sua pele era emblema. Avistou uma ampla dimensão de areia, que emoldurava, combinando com as espumas brancas, o infindável oceano. Reparou nas pessoas que circulavam no calçadão, além daquelas que torravam, deitadas ao sol, e as outras que liam, bebiam água de coco, tomavam cervejas em lata, conversando, fixadas em sombras feitas por exageradas barracas de nylon fincadas na areia.

Sem pensar duas vezes, dirigiu-se à areia, sentou-se à mesa de um barzinho móvel, passou o bronzeador comprado em um vendedor ambulante, dispensando o protetor solar, e pediu um coquetel de frutas cítricas. Depois foi até o limite do mar, onde as ondas quebravam, alugou uma cadeira de praia e por lá ficou cerca de meia hora. Por causa da ardência, voltou à mesinha do bar e pediu uma tônica para reidratar. Quando se deu conta, não era mais alvo da atenção dos curiosos. Tinha se homogeneizado, adaptado ao ambiente. Passou sua cor em revista e... Não acredito! – Exclamou.

Estava com a pela bronzeada, exatamente como todos os veranistas que se instalavam na praia, adotando-a como segunda residência. Ficou deslumbrado! Tão surpreso, tão surpreso por ter finalmente mudado de tonalidade, ficando idêntico a todos... que acabou tendo saudade de sua antiga cor bege.

Assustado com o resultado, principalmente por ter se igualado a todos que viviam na orla, decidiu passar um tempo repousando no hotel que reservara no litoral, sem sair do apartamento. Em algumas semanas já havia desbotado suficientemente, conseguindo readquirir seu inconfundível tom bege.

Ao sair do hotel, já em tempo de voltar para casa, teve outra surpresa que não foi em hipótese nenhuma menor que a primeira, ao constatar seu bronzeado. Notou que todos os turistas, visitantes, veranistas, que estavam chegando à praia, como ele também antes chegara, sem exceção, exibiam a mesmíssima cor bege. Espantado, suspeitou que fosse objeto de algum feitiço, quebranto, mandinga, pois retornou à sua cor bege justamente para fugir do anonimato, da igualdade, mas que agora, todos os recém chegados à praia estavam exatamente iguais a ele: Beges!

Zonzo pela violenta descoberta, empalidecido, aproximou-se de um dos recém chegados à praia, abordando-o. Qual a sua cor? Qual a sua cor? – Perguntou Pedro visivelmente perturbado. Os primeiros a serem abordados por tal enlouquecido transeunte, desviaram-se dele apavorados, esquivaram-se com horror. Depois de várias tentativas fracassadas, um dos homens beges parou, dando exemplo de solidariedade com pobre criatura desorientada. Após ouvir sua pergunta com atenção, o bondoso homem respondeu: Minha cor é branca!

Essa resposta causou enorme agitação em Pedro, perturbando-o ainda mais. Mas se aproveitando da gentileza do homem bege – que disse ser branco – insistiu nas perguntas, agora querendo que ele lhe respondesse sobre sua própria cor. O homem, sensibilizado pela condição atordoada de Pedro, dispôs-se a responder mais uma de suas perguntas, afirmando de forma taxativa: - Branco! Sua cor é branca...

Após ouvir a resposta, Pedro recuou, atônito, até visualizar, coincidentemente, um cartaz que anunciava uma seleção para uma agência de modelos. O cartaz dizia que estavam convocando homens e mulheres brancos e negros. Pedro apertou a vista para ter mais nitidez e acuidade visual, mirando algumas fotografias de modelos já selecionados. Percebeu que havia alguma incoerência nos dizeres do cartaz e nos retratos expostos. O cartaz dizia brancos e negros, mas nas fotografias só havia homens e mulheres beges - uma escala variante de tons de bege! – Afirmou um Pedro inculcado.

Numa epifania religiosa, dom que só os místicos, bêbados e presidiários são contemplados, a verdade foi revelada a Pedro, vinda como um raio certeiro que lhe abriu a cabeça. Pedro pôde compreender, após passar anos sem respostas, que em sua terra natal, não há negros e não há brancos. Na pátria tupiniquim, como todos são bastante misturadinhos, miscigenados - só há beges! Variando para o tom bronzeado nos dias quentes de verão – A cor do pecado!


CONTO ESCRITO por ALEX AZEVEDO DIAS.

sábado, 15 de janeiro de 2011

Cléo
















Foi numa noite típica de centros comerciais, em que a escuridão é afugentada pelas lâmpadas incandescentes das vias públicas, com estrelas eternamente encobertas pelos arranha-céus, que Jonas conheceu Cléo. Um estranho laço os uniu. Laço, que de tão absurdo, revelava um traço familiar.

Em horário avançado, mas não tanto para que as principais vias estivessem vazias, Jonas caminhava pela calçada de uma ruela de acesso à larga avenida. Voltava de uma longa jornada de trabalho - estendida por uma rápida conversa com amigos, de pé, encostado no balcão de um botequim de esquina - quando estancou seus passos diante daquela presença. Impacto agudo, misto de inebriante repugnância e de uma não menos embriagante atração.

Um petardo invisível, mas de alto poder destrutivo, invadiu-lhe o nervo ótico já refratário a aventuras românticas pelas rugas de decepções que colecionava em seu cenho. Aquele irresistível chamado inaudível sugou os pensamentos avariados de Jonas, fazendo-o concentrar sua atenção, impetuosamente, na híbrida figura deitada à porta fechada de uma luxuosa agência de viagens. Uma jovem mulher dormindo quase no chão, na solidão movimentada da rua, visão causadora de aspectos oscilantes, ora de hostilidade, ora de ternura - beleza ferina, feiúra libertina.

Cléo estava coberta por uma espessa camada de sujeira, deitada feito uma mendiga, sem pedir migalhas de compaixão. Jonas hesitou por alguns instantes para se aproximar dela, devido às condições desfavoráveis, afinal, ele era um trabalhador e ela, uma condenada à indigência. Além também de haver alguns indivíduos mal encarados que contribuíam para a distância precipitada, pois Jonas temia que mesmo não sendo de ninguém, Cléo estivesse rodeada por homens que a considerassem propriedade deles. Aquela mulher dormindo no território da mendicância, de um grupo de moradores de rua, poderia ser julgada como objeto pertencente a alguém.

Absorvido pela fixa vibração que o extasiava, não resistiu por muito tempo e furou a barreira que o impedia de chegar perto da mulher. Jonas ficou bem próximo dela, inclinando seu corpo para frente no intuito de vê-la melhor. Não se intimidou com os prováveis curiosos que o observavam. Mas a posição do volume do seu corpo, contra a incidência da luz, provocou um sombreado nas pálpebras de Cléo, causando o seu súbito despertar.

Ao abrir os olhos, encontrou o olhar assustado de Jonas, e de forma penetrante, fitou-o longamente. Não desviou seu olhar por nenhum momento. E notando o constrangimento estampado no rosto do homem que a estava contemplando, Cléo esboçou um sorriso que imediatamente se transformou em uma aparvalhada gargalhada. Jonas ameaçou correr, fugir da situação vexatória, mas permaneceu congelado diante daquela hipnótica presença.

Ela se levantou e tentou colocar a mão no ombro de Jonas. Ele se esquivou instintivamente, disfarçando o nojo que sentia, não permitindo ser contaminado por uma mão imunda. Caso uma de suas unhas, foco de proliferação de bactérias, arranhasse sua pele hidratada e higienizada, fatalmente estaria contaminado. Mas Jonas não se deu conta que outros tipos de bactérias já haviam se transmitido de forma irreversível. Uma força exercia sobre ele uma potencial atração à qual se submetia inegavelmente, embora aquela aparência suja o repelisse.

Foram caminhando juntos. Cléo se colocou ao lado de Jonas de uma maneira tão natural que não parecia que tinham se visto pela primeira vez a pouco menos de meia hora. Ela não tinha mais de 25 anos. Pele morena – o que foi possível enxergar debaixo de toda aquela sujeira – olhos azulados, cabelos louros, lisos e ondulados nas pontas. Os cabelos pareciam bem cuidados, apesar do aspecto de seu corpo noticiar a secular falta de uma ducha caprichada, de uma chuveirada vigorosa para tirar as grossas camadas que já aderiam à sua pele.

Foi durante essa animada conversa, caminhando pela calçada do centro da cidade, com Jonas quase cedendo à insana vontade de beijar aqueles lábios que o chamavam enquanto articulava-os ao falar, dirigindo-se a ele, que uma proposta surgiu. Cléo avistou um cartaz que anunciava uma festa à fantasia, com a data marcada para começar brevemente, a apenas alguns minutos. Jonas certificou-se do convite, aberto ao público, e identificou alguns nomes de conhecidos seus.

Percebendo se tratar de mais uma escolha excêntrica, refletiu sobre o motivo de estar ali, com aquela mulher suja – apesar de muito bela – vestindo andrajos. Balançou a cabeça, na esperança de afastar pensamentos recorrentes e desanimadores e avaliou a circunstância de ser uma festa à fantasia. Contrariando a lógica asséptica, Cléo, mesmo sem banho, com toda aquela sujeira, não cheirava mal.

Talvez não tivesse nenhum odor. Era neutra em matéria de aromas. Quando Jonas começava a se sentir bem com ela, sentia cheiros de lavanda, jasmim, alfazema e sândalo, cheiros característicos de limpeza, mas sabia que eram fragrâncias exaladas de seu inconsciente apaixonado. Esses cheiros não vinham dela, pois definitivamente ela não tinha odor, não fedia nem cheirava bem.

Sem o cheiro para denunciar a condição miserável, sua aparência seria normalmente incorporada ao tema da festa à fantasia. Dessa forma, Jonas não seria rejeitado socialmente por andar ao lado de uma mulher naquele estado deplorável. Sua grossa camada de sujeira seria recebida pelos convidados, cada um trajando suas indumentárias extravagantes, como uma autêntica fantasia. Ninguém veria o exterior daquela mulher suja. As pessoas fantasiadas veriam apenas a beleza feminina por baixo de uma armadura sebosa.

Na festa, a realidade subumana de Cléo fez enorme sucesso entre os convidados, pela espontaneidade e capacidade inventiva dela, por ter conseguido fielmente reproduzir o natural em sua singular “fantasia”. Ambos permaneceram juntos, conversando em rodas de amigos, comendo e bebendo. Ninguém sequer poderia imaginar a verdade grosseira, fardo pesado que só Jonas era obrigado a carregar. A própria Cléo parecia desmemoriada. Levava em seu corpo a origem humilhante, mas agora disfarçada, trocada por uma real fantasia de si.

Jonas cada vez se espantava mais com as atitudes de Cléo. Ela exibia movimentos pomposos, sinuosos, andar elegante como se estivesse flutuando pelo salão, fala galanteadora e afinada. Será que só ele tinha consciência da verdade? Cléo havia se esquecido? Ou será que nunca soube, que estava esse tempo todo alienada de sua condição? Jonas não parava de se impor essas perguntas, repetidamente. Ficou isolado na festa, excluído, com as têmporas latejantes de dúvidas. Enquanto Cléo alcançava o estrelato instantâneo, sendo adorada pelos membros mais nobres da família anfitriã da festa, abordando sempre assuntos inteligentes e sedutores, Jonas ia se apagando, entrando no anonimato, distanciando-se.

Depois que retornou à festa, da sacada do casarão antigo - endereço no qual o tema da alegria cedeu espaço à irrealidade antipática, à outra face de Cléo, invisível - revelou-se a verdade que não foi vista por Jonas. Era disso que ele se esquivava, não da suposta sujeira. Temia o encontro mortífero com o desconhecido, com algo que estava muito além de seus limites mundanos. Jonas percebeu que só existia uma sujeira – a que tampava seus olhos. Tela que bloqueava sua visão. Cegueira da alma. Via apenas a imundície - seus próprios olhos. Não via Cléo. Agora que o véu caiu, podia vê-la, mas ela já não estava lá. Era ela que se esquivava, não o conhecia.

Cléo desapareceu dos olhos de Jonas. As paredes daquele lugar a consumiram. Seu corpo virou éter e foi absorvido pela porosidade do casarão antigo. A festa parou. O tempo parou. Ninguém mais se mexia. Apenas Jonas ainda ouvia um suave dedilhar de violoncelo que fazia um eco baixinho na acústica que se formou pelas mobílias afastadas, no espaço reservado à dança. Só a essência de Cléo insistia em não abandoná-lo. Agora era ela a sua consciência. O olhar de Cléo que o seguia.

CONTO ESCRITO por ALEX AZEVEDO DIAS.

quinta-feira, 13 de janeiro de 2011

Meu livro de contos à venda.









Histórias armazenadas no baú do inconsciente infantil. Páginas em branco à espera do folclórico traço do autor.

Desaparecimentos espetaculares.

Retornos fantasmagóricos.

A confluência do imaginário com a realidade.

Qual o ponto em que a ficção toca a realidade?

Será a ficção um conto fictício, ou realidades ditadas pela narrativa ficcional?

A literatura talvez não seja literal – mas litoral – fronteira de fantasias – a verdade do escritor.

Neste livro de contos, Alex Azevedo Dias escreveu estórias surpreendentes que levam o leitor a enigmas com inúmeras possibilidades. A inquietude fascinante da dúvida, contrapondo-se ao amortecimento das soluções.

Seus contos fazem pensar, refletir, rir e chorar. Um fôlego suspenso até a última linha. Personagens que vivem as situações-limite entre falsas realidades e fantasias reais.


Sumário

09 -------------------------------------- O Montinho de Livros

21 ------------------------------------------------ Morte na Folia

35 --------------------------------------------------------------Cléo

43 ------------------------------------------------------ A Amante

51 ------------------------------------------------------------ Katie

61 ----------------------------------------------O Baú Sonhador

77 -----------------------------------------------------Pedro Bege

87 ------------------------------------------------Transamazônia

97 ------------------------------------------------A Ressurreição

111 ---------------------------------------------------- Sapatando

117 ---------------------------------------- O Besouro de Praia

121 ---------------------------------------------------O Chamado

125 -------------------------------------------------------À Janela

131 -------------------------------------------------------Pedrazul

135 -------------------------------------------------------À Mesa do Café


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segunda-feira, 10 de janeiro de 2011

A Ressurreição.












Num domingo de Páscoa, o repicar dos sinos da paróquia anunciava a proximidade da hora canônica. O venerando corpo eclesiástico reunia-se calmamente para a celebração litúrgica das seis horas da tarde. Afonso se preparava para a homilia do sacerdote, ao lado de sua esposa. Laura resistia em estar ali, pois não era católica praticante, e até se considerava atéia em momentos de discussões religiosas com o marido. Ele estava ajoelhado, com os olhos fechados, cabeça baixa, e as mãos espalmadas em oração e louvor suplicante. Alguma coisa muito grave ameaçava a manutenção daquele ambiente sagrado.

Ao visualizar a cena do padre subindo ao púlpito para ler um trecho das Escrituras Sagrada, Afonso sofreu um colapso, simultâneo ao instante em que o sacerdote iniciou a leitura. Apreensiva, Laura fez de tudo para reanimá-lo. Alguns fiéis, companheiros de oração, levantaram-se e prestaram socorro à vítima desacordada. Outros aumentaram a fé, fervorosos, repetindo incansáveis preces para auxiliá-los. Ofereceram assistência à esposa que, aflita, desfazia-se em copiosas lágrimas. Mas Afonso permanecia imóvel. Jazia como O crucificado. Havia perdido as funções vitais, caído naquele santuário com os joelhos dobrados, cabeça apoiada no espaldar do banco da frente, braços suspensos, pendurados ao longo do corpo.

Enquanto o padre continuava sua missa impassível, formou-se um clarão em torno do corpo desfalecido de Afonso. Todos já estavam de pé, rodeando aquela criatura beatífica que morreu ajoelhada, humilde, na mesma posição em que rezava a ave Maria. As carolas mais idosas, agradecendo a benção recebida, esperavam com plácida abnegação presenciar o fenômeno da ressurreição. Será que a igreja iria testemunhar um verdadeiro milagre? Será que teriam finalmente uma eucaristia que não fosse meramente simbólica? Os fiéis deliravam com essa possibilidade.

(...)

Tudo começou quando Afonso conheceu Laura em uma de suas aventuras anuais. Na estação ferroviária, um grupo de amigos combinou de se encontrar com Afonso para embarcarem num trem de carga, clandestinos, com a finalidade de passarem suas férias em outro estado, já que não tinham nenhum tostão furado no bolso que cobrisse as despesas com viagens. Durante o trajeto na linha férrea, o trem deu uma pequena parada para despachar algumas encomendas postais, e nesse ínterim, Laura subiu ao vagão com outras duas amigas, também clandestinamente, visando o mesmo destino do grupo de amigos e de Afonso.

Quando os olhares de ambos, Afonso e Laura, cruzaram-se, uma súbita paixão fulminou-lhes, dilacerando suas almas inquietas.

- Qual o seu nome?

Ela não respondeu de imediato. Permaneceu fitando-o perplexa. Por alguns minutos nenhum dos dois falou. Os outros viajantes mantiveram uma conversa animada e não perceberam o silêncio revelador daquele encontro. Uma aura angelical havia enlaçado os dois jovens, numa fixação hipnótica irredutível. O tempo tinha parado. Mesmo com a agitação e burburinho estridente dos companheiros de viagem, nada mais existia além daquela sintonia cósmica.

- Eu me chamo Laura.

O instante em que Laura proferiu o seu nome foi marcado por um solavanco que retirou o casal de seu isolamento amoroso, trazendo-os à realidade calamitosa que se delineava na locomotiva. O trem começou a chocalhar, chocalhar, vindo a descarrilar ao colidir com um pedregulho que tinha despencado de uma montanha rochosa. Ambos foram arremessados para uma região desértica. Apenas tiveram leves escoriações, mas ficaram impactados emocionalmente pelo trauma do que se sucedeu. Caminharam por horas intermináveis.

Após dias de caminhadas, exaustos, fedorentos, sedentos e esfomeados, chegaram a um povoado, a um aconchegante lugarejo que certamente não estava registrado nas cartografias oficiais. Foram acolhidos com hospitalidade pelos aldeões. Deram-lhes de comer e de beber. Depois os dois relaxaram numa agradável jacuzzi improvisada, um tonel feito de tábuas de madeira montado no gramado. Tomaram um duradouro e revitalizante banho e depois repousaram num confortável dormitório rústico.

Aquela espécie de colônia, cuja vida predominante se aproximava do campesinato, com exclusiva produção de subsistência, situava-se a léguas da civilização. Afonso e Laura estavam num território que, de tão longínquo, os dois poderiam se comparar a náufragos perdidos numa ilha inexplorada.

Após o acolhimento exemplar, os dois foram encaminhados a um lugar especial, perto do litoral, no qual, fincado na areia, compondo um tipo de altar, reinava soberano um grandioso crucifixo esculpido em pedra sabão. Esse monumento crístico tinha estimadamente três metros de altura. Exatamente ao pé da cruz, quatro pessoas, parecendo sacerdotes, estavam vestidas com túnicas franciscanas e usando solidéus contendo uma estranha inscrição. Os dois forasteiros, abismados, foram convocados para participarem de uma cerimônia étnica, um tipo de ritual para catequizar os silvícolas pagãos. Mas ambos já eram iniciados na ordem católica. Foram batizados e crismados.

- Será que não perceberam que somos cristãos?

- Também não estou alcançando aonde querem chegar...

- Estou tentando comunicar isso a eles, mas parece que deixaram de entender a nossa língua.

- Afonso, estou com medo!

- Vamos descobrir uma maneira de sairmos dessa confusão!

Um dos pontífices agarrou Afonso pelo braço e o puxou até o altar. Lá, havia algo semelhante a um púlpito no qual um sacerdote designado faria a leitura de mensagens apocalípticas. Colocaram-no de joelhos, vestiram-lhe um capuz e dobraram seus braços nas costas, atando suas mãos. Neste instante, Laura foi conduzida a um patíbulo para suplícios. Despiram-na e a amarraram seus braços e pernas à superfície de um cavalete idêntico ao tripalium, objeto romano no formato de tripés utilizado para torturas.

Um dos sacerdotes vociferou enfaticamente:

- Subam-na ao patíbulo! Eis o cadafalso do qual os instrumentos do suplício se erguem! O senhor patibular purificar-lhe-á sua alma fétida e pecaminosa de cortesã...

Com instrumentos considerados divinos, os sacerdotes seviciaram a moça, proferindo frases ininteligíveis. Continuaram entoando cânticos para potencializar as sevícias e, num átimo, transpassaram o corpo de Laura com uma lança semelhante a um florete, espada de esgrimistas. Laura esvaiu em sangue, estremeceu o corpo por longos segundos, deu um agonizante suspiro e morreu. Laura serviu como objeto de oferenda num macabro ritual santificado no qual o carrasco se deliciava em êxtase no patíbulo do sacrifício, realizando seus movimentos fatais em sincronia com o ritmo da leitura do sacerdote escolhido para o púlpito.

Aplicaram uma injeção contendo uma substância sonífera tão potente, que Afonso dormiu durante quase uma semana inteira. Quando acordou, estava desorientado, devido ao resíduo do sonífero que ainda se demorava em seu organismo. No momento exato em que despertou, sentiu um volume ao seu lado, em sua cama. Assustado, mas ainda assim curioso, foi verificar do que se tratava tal volume. Seria um corpo morto? Uma pessoa? Mas quem? Ao tocar na pessoa que estava embaixo das cobertas, ela se virou, apalpou-lhe o rosto, segurando-o entre suas mãos e o acariciou suavemente. Era uma bela mulher que ali ficou, ao seu lado, durante toda a semana que Afonso permaneceu dormindo. Ao lhe perguntar seu nome, ele ficou paralisado pela impossibilidade de tal revelação e, vagarosamente, após se recuperar, tentou escapar dali, recuando passo a passo.

- Eu me chamo Laura.

- Laura?! Não é verdade! Quem é você?

- Sou Laura, querido. A sua Laura.

- Não brinque comigo! Isso não pode existir! Laura morreu, eu vi. Foi brutalmente assassinada num cadafalso.

- Que isso, meu amor? Deve ser ainda o efeito da convulsão que você teve quando estávamos na praia. Sofreu uma insolação que lhe causou queimaduras graves e uma boa dose de alucinações. Os aldeões o medicaram adequadamente, e o trouxeram para este quarto. Você nos preocupou muito, pois permaneceu dormindo por uma semana inteira.

- Não é verdade!! Vocês a mataram!! Cadê minha Laura? O que você quer de mim, sua impostora?

- Meu amor, veja! Eu não mudei nada, continuo sendo a mesma.

- Saia daqui, sua assassina!!!

- O que é isso, meu Deus?!

- Afaste-se! Afaste-se!

- Os aldeões estão preparando uma solenidade belíssima para nós dois. Nós vamos nos casar, meu amor!

- Quem é você? Não é a Laura!! Não a conheço!

É... Você ainda não se recuperou do efeito dos remédios. Darei um jeito! Você ficará ótimo!

(...)

Após um mês, o matrimônio foi consumado. A missa foi celebrada na melhor capela da colônia, com direito a uma ornamentação digna da aristocracia. As festividades, com a recepção de ilustres convidados, amigos íntimos que o casal fez durante a convivência com os aldeões, foram realizadas num ambiente aberto, campo florido com margaridas, gérberas, crisântemos e tulipas. A satisfação circulava sólida e íntegra nos rostos iluminados de todos os convidados. Apenas Afonso continuava com um semblante amargo, pesaroso, mas suficientemente disfarçado para não levantar suspeitas sobre seu real estado.

Passaram-se os anos. A vida do casal foi sendo enriquecida por experiências que contemplaram uma ideal vida a dois. Os hábitos cotidianos, pelo menos aparentemente, apagaram os resíduos da absoluta convicção que Afonso tinha a respeito da identidade falsa da mulher. Ele incorporou aquela mulher à sua vida conjunta diária, mesmo ainda tendo a íntima certeza que já não se tratava mais da mesma Laura.

Afonso sabia que fora coagido, que lhe impuseram que se casasse com uma mulher que jamais vira à sua frente. Sabia que fora vítima de um plano obscuro. Mas não tinha a menor ideia sobre as razões motivadoras para que tal situação ocorresse. Qual seria a intenção daquele povo? Por que mataram a verdadeira Laura em um sacrifício e colocaram outra pessoa em seu lugar, forjando um matrimônio para uni-los? Sobre tudo isso, jamais teve explicações. De forma sensata, temendo represálias, resolveu parar de questionar e assumiu aquela mulher como sendo a mesma. Passou a fingir que nada tinha acontecido para tentar se livrar de possíveis condenações furiosas pela revelação da verdade.

(...)

Na igreja, após a morte repentina de Afonso em pleno domingo de Páscoa, um balbucio entoando uma lamúria repetitiva, lamento abafado, foi estranhamente ouvido.

- No púlpito a vida é celebrada. No patíbulo a vida é ceifada!

- No púlpito a vida é celebrada. No patíbulo a vida é ceifada!

- No púlpito a vida é celebrada. No patíbulo a vida é ceifada!

Era Laura inconsciente, de olhos arregalados, corpo enrijecido, boca trêmula. Alguns fiéis mais resistentes ao discurso dos milagres abandonaram a fascinação em testemunharem a ressurreição cristã representada pela posição da morte de Afonso, no genuflexório, e foram ao encontro da pobre Laura, submetida ao estado catatônico. Prestaram-lhe socorro imediato, levando-a para um lugar seguro, longe dos olhos de curiosos, antes que pudesse ser encaminhada para uma clínica na qual fosse cuidada e tivesse condições de repousar e se recuperar daquele trauma que a deixou em estado de choque.

(...)

- O que estou fazendo aqui? Que lugar é este?

- Estamos aqui para ajudar. Qual o seu nome?

- Eu me chamo Laura. O que aconteceu?

- Encontraram você dormindo nos trilhos do trem. Não se lembra?

- Não... Onde está Afonso?

- Ah! Você então se recorda desse nome!?

- Sim... Ele é meu marido. Só me lembro que ele foi trabalhar e não mais voltou. Fiquei esperando aflita na estação ferroviária seu retorno. Há 15 anos ele pegava o mesmo trem para o trabalho.

- Mas você não pode ter um marido chamado Afonso!

- Como não?! Afonso é meu marido!

- Quando e como se casaram?

- Há 15 anos. Foi uma cerimônia simples, apenas os pais dele e os meus estiveram presentes.

- Quais os nomes dos seus sogros?

- Francisca e Gustavo.

- E os nomes dos seus pais?

- Francisca e Gustavo.

- Os mesmos nomes dos pais de Afonso?

- Estranho... Não sei. Estou confusa...

- Sim. Estou com a sua identidade. Esses nomes são dos seus pais realmente. Veja!

- Não quero ver!!

- Eu insisto... Veja!

- ...

- Quem é você?

- Laura.

- Laura foi a filha que seus pais tiveram antes de você nascer. Laura faleceu com apenas 2 meses de vida. Você não chegou a conhecê-la.

- ...

- Qual o seu nome?

- Eu me chamo Afonso.

- Viu? Não doeu. Venha meu amigo... Eu o levarei para os seus pais. Eles já estavam preocupados...

(...)

- Meu filho! Que bom que você chegou!! O padre Abacílio disse que você passou a manhã inteira com ele, seguindo suas instruções bíblicas, mas que não sabia informar para onde você foi depois.

- ...

- Não importa saber detalhes! O importante é que você chegou na hora certa! Não irá se atrasar para a sua Primeira Comunhão com Deus! Vamos, vamos, apresse-se! O padre Abacílio já está novamente à sua espera na Igreja. Será um dia inesquecível!


CONTO ESCRITO por ALEX AZEVEDO DIAS.

sábado, 1 de janeiro de 2011

O Montinho de Livros.
















Em meio àquelas incontáveis estantes da histórica biblioteca do vilarejo, pouco visitada pela escassa população de seus arredores, havia uma série de livros envelhecidos empilhada no piso frio. Eles ficavam lá porque seus títulos e aparências não se encaixavam nos dignos catálogos que garantiriam um lugar privativo em uma das reverentes prateleiras. Enfileirados, rabugentos, os livros que foram catalogados pela precisão cirúrgica da bibliotecária, únicos existentes, expunham a tez soturna dos distintos senhores que observam por cima dos óculos dando suas nobres atenções como esmola aos iletrados.

Todas as manhãs, tardes e noites, durante um período considerável de sua meninice, um jovem lia sentado à mesa ao lado da pilha de livros rejeitados. Escolheu aquele exato lugar, pois o peculiar montinho de livros exercia sobre ele um verdadeiro fascínio. Parecia que ao invés de possuí-los com o olhar, eram eles que o vigiavam, seguindo minuciosamente seus movimentos enquanto lia. Aquela sensação de ser visto, acompanhada por fixos e penetrantes olhinhos de capas duras, invadia-o tenazmente.

Silenciosas presenças ali se remexiam, anunciando que o jovem leitor não estava só. Uma desagradável comichão subia-lhe pela espinha nas linhas e frases que mais requeriam sua atenção. Justamente nos momentos de maior suspense do romance era obrigado a interromper a leitura, pois um certeiro peteleco atingia-lhe a orelha. Mesmo com tantas esquisitices, uma atraente e irreconhecível força o mantinha colado àquela cadeira de estudos.

Desde a primeira vez que chegou àquela biblioteca, vindo de uma região vizinha desprovida de livros, ficou perplexo diante de tão deslumbrante cenário aberto aos seus olhos. Monumentais acervos, vastíssimas coleções, grande quantidade de exemplares disponíveis. Aquilo tudo era tão inacreditável que a realidade se tornara fugidia, irrequieta, teimando em escorregar até se esconder em passos macios. Para manter os pés no chão, pediria a um colega que o beliscasse, numa tentativa frustrada de confirmar a existência das coisas, pois não havia outra mão que fizesse tal serviço doloroso.

O salão principal no qual os autores de relevo e as pioneiras encadernações se dispunham em paralelas sincronias matemáticas, com impecável iluminação e ornamentação artística, ainda assim não foi capaz de oferecer acomodação satisfatória ao ilustre visitante ávido por leituras. Ele se deteve por alguns instantes no convidativo salão, esfregou a vista por causa da imensa claridade, passou os olhos pelas estantes abarrotadas de edições luxuosas, mas não sentiu vontade de tocá-las, pois não foi também tocado por elas.

Continuou sua caminhada pelos diversos recintos da biblioteca, mas após retornar ao salão principal, pôde avistar uma pequenina porta ao fundo. Chegando mais perto daquela enigmática moldura, o jovem notou a existência de minúsculos entalhes na madeira, sutis trabalhos de xilogravura noticiando a inspiração de cuidadosos e ágeis artesões que lá depositaram suas elegantes fantasias.

Ao girar a maçaneta, avalanches e redemoinhos metafísicos invadiram seus arquivos mentais, explorando nostalgias guardadas a sete chaves. O jovem leitor foi coberto até a alma por finas camadas intercaladas de seda e de cetim, transmitindo a suavidade de jardins floridos. Uma alegria feroz e diáfana, voraz e lírica, percorreu-o até as pontas dos dedos. Foi conduzido vagarosamente por formas vibráteis e miríades de texturas envolventes e sedutoras. Uma leve fumaça vendou-lhe os olhos, levantou-lhe o cético corpo e, flutuando, adormecido, deslizou até a mesa de estudos ao lado dos poeirentos e esquecidos livros empilhados no chão.

Quando despertou, o jovem surpreendeu-se por estar bem acomodado a uma simples e envelhecida mesinha de leituras. Diferente do aristocrático ambiente do salão central, no qual as disposições das estantes, a galeria de artes nos corredores e a não menos requintada iluminação lembravam estúdios cinematográficos ou palácios reais, aquele recinto em que repousava à mesa, tinha um aspecto rústico, lúgubre, sombrio. A luz para a leitura se resumia apenas a um basculante na parede lateral e a um frágil abajur em cima da mesma mesinha à qual repousava.

Aquele seria o lugar ideal para ler em silêncio, com paz e tranquilidade – pensou o jovem com inegável positividade. Apesar de belíssimo, o salão principal era demasiado entediante e enfadonho. Aquele excesso de luz e de decorações milimetricamente organizadas formava uma atmosfera tão asséptica e fria, que não convidava à vivacidade e ao desejo caótico que as aventuras e desventuras literárias exigiam. Ao contrário, a salinha em que o jovem se demorava devaneando era perfeita. Aqueles livros bolorentos e inchados de tão usados, lidos e relidos, exibiam espectros e sombras das profusões de seus personagens. Apresentavam indeléveis traços, folhas soltas, rasgões, capas furadas, mancos, banguelas, mas sempre mantendo intactos os conteúdos e essências mirabolantes.

Os livros arrumados em seções assimétricas da peculiar salinha em que o jovem se encontrava, não eram escritos com tintas de canetas, penas, máquinas de datilografar ou impressões de computador. As letras saltavam aos olhos, em texturas de altos relevos, costuradas e bordadas por folclóricas agulhas de exímios alfaiates; alicerçadas por míticas espátulas de indômitos pedreiros; arrematadas e desbastadas por esgrimistas de primeira qualidade.

Compondo a exótica paisagem, o modesto e irregular montículo de livros, ao lado do inveterado leitor, mesmo de aparência grotesca, embevecia a quem já estivesse naufragado na fluidez dos afetos mais primários. Regredidas e intransferíveis afetações. Não nocivas, mas também não inofensivas. Afetos inflamados, produtores de fendas e rachaduras nos frágeis e vaidosos sentimentos daqueles que ensaiavam um contato, mesmo que de longe, com os enfermos livros abandonados pelos padrões da ordem econômica da biblioteca. Mas que pobre alma ousaria se aproximar de tais asquerosas criaturas? Emplastros danosos que nem ao menos conseguiram uma reserva nas estantes destinadas aos livros bolorentos, quase estragados, aguardando aflitos e ansiosos as infindáveis restaurações.

O jovem leitor praticamente aderido à mesa de estudos devorou quase a totalidade dos exemplares classificados nas estantes da saleta. Todavia, aquelas impronunciáveis e malditas brochuras ensebadas, companhias inseparáveis do rapaz que sonhava em vigília, largadas sobre o piso frio, permaneciam intocadas. Embora o contato físico jamais tenha ocorrido, sempre redundando em absoluto fracasso as inúmeras tentativas para que o ato se consumasse, a desprezada pilha de livros exercia uma singular corrente vibratória que algemava o leitor em sugestões e influências múltiplas.

Havia uma barreira intransponível na relação livro/leitor, mantendo-a sob o regime de um enrijecido cordão de isolamento. Aqueles livros pareciam seres sobrenaturais, uma manifestação peculiar de vida extraterrena. Era impossível para alguém enraizado em tal circunstância, aproximar-se o suficiente daqueles seres encapados, para abri-los. Invisíveis e sólidas carapaças de criaturas oníricas, de paradisíacos cenários, de habitantes abomináveis e fascinantes, compunham o múltiplo universo das letras. Os paradoxos transbordavam por entre os afinados dedos que folheavam com desenvoltura as páginas amarelecidas por tantos fôlegos reprimidos - pelos suores em suspenso.

O jovem começou a duvidar se aqueles livros alguma vez foram realmente abertos. Talvez nem livros fossem. Por que tantos mistérios e segredos circundavam aquele envelhecido montículo de livros? Poderia ser uma ilusão de ótica, uma pintura surrealista, camuflagens, mimetismos...

As referências plausíveis, preservando sua sanidade, já haviam se esgotado. Não queria se dispersar da hipnótica leitura que o consumia esfomeada, perdendo-se em deduções racionais. Um irresistível impulso o dominava. Não poderia se ausentar daquela sala nem ao menos para se dobrar sobre suas necessidades básicas. Estava consolidado à mesa, observado sem interrupção por seus adoradores livros empilhados ao lado, ali jogados, no piso frio.

No início, ainda sob um ritmo intermitente, conscientizava-se de sua condição sonâmbula. Mas as perdas de consciência nas quais se emaranhava por longos períodos, pouco a pouco ficaram irreversíveis, e o jovem mergulhado na trama ficcional, com aspecto de crisálida, foi metamorfoseando lentamente até se tornar uma personagem fantasiosa, morrendo no mundo real e adquirindo um tipo de vida contornada por sua silenciosa e cadenciada narração.

Estampado numa das páginas de sua formidável leitura, já do outro lado de quem lê, pôde ver sua face compenetrada, semblante pesaroso, testa franzida, rugas esboçando uma melancólica fixação, nitidamente capturado pelo mundo de letras e tintas. As comichões e petelecos perseveraram incessantes e indomáveis. Seu corpo jazia imóvel e absorto no instante no qual, sem desviar, ainda concentrado na leitura, renascia como personagem desenhada pela pena de algum desatento e sonolento escritor.

O corpo continuava lá, estático, enraizado em cada parágrafo, linha e estrofe da narrativa, enquanto o jovem, tonto e enjoado, como personagem da ficção, percorria os cenários compostos por fantasias diurnas. Foi nesse contexto, regado pelos mares do absurdo, que uma gigantesca mão solitária usando luvas de pelica surpreendeu-o ao se inclinar sobre o livro, apoiando-se ruidosamente na mesinha, sem que o antigo corpo do jovem colado à cadeira sequer notasse a imensa presença daquela misteriosa mão.

Ela portava uma avantajada e rústica lupa de dimensões irregulares, com o aro torto, possivelmente vítima de uma queda. Posicionou-a em direção ao jovem, agora na pele da personagem de uma estória, exatamente na página 62, terceiro parágrafo, em que ele apareceu pela primeira vez na ficção. Naquela precisa página, o jovem renascia na estória, originava-se.

A lupa condensou suficiente calor, projetando-o nas tintas do parágrafo inaugural. O aglomerado de letras no qual a jovem personagem estava contida começou a derreter freneticamente. Os textos escritos não mais sustentaram nenhum laço de lógica ou de razão. O livro passou apenas a apresentar páginas chamuscadas e manchadas nas quais antes estavam conectadas indeléveis semânticas.

Numa curiosa agitação, o montinho de livros esquecidos no chão, por não se classificar em nenhum gênero nas estantes da biblioteca, ergueu-se em espirais enérgicos, levitando, flutuando. Abriram as espessas couraças pestilentas, exibindo intimamente seu conteúdo. As capas uniram-se às contra capas, formando as silhuetas de arrojadas asas batendo em sincronia com seus patrícios. A ventania desfolhou-os com tanta violência que suas desnudadas páginas ficaram à mostra. Foi aí que aquele corpo apático recuperou a tenacidade e foi subitamente preenchido pela essência do jovem que retornou do livro pelo calor da lupa.

O jovem olhou admirado para as páginas despidas que se expunham à sua frente. Não havia qualquer mísera linha escrita. Estava tudo submerso na gelada cor branca. Aquela falta de imagem, de ilustração, de palavras, um extenso deserto do Nada oferecido como nauseante espetáculo aos seus lacerados olhos, consumiu-o em profunda e relutante angústia. Um convite à reflexão. Irredutível verdade. Não mais teria forças para se alienar às letras bem acabadas de suas apaixonantes literaturas.

Os livros que não se encaixavam nos dignos catálogos da biblioteca eram apenas seus, de mais ninguém. Suas inúmeras páginas em branco representavam a sua vida. O jovem leitor, pulsando no vazio, “tabula rasa”, preenchia-as com as linhas sinuosas de sua singular vivência, de sua história livre, nos livros - Sua alma.

CONTO ESCRITO por ALEX AZEVEDO DIAS.