Num domingo de Páscoa, o repicar dos sinos da paróquia anunciava a proximidade da hora canônica. O venerando corpo eclesiástico reunia-se calmamente para a celebração litúrgica das seis horas da tarde. Afonso se preparava para a homilia do sacerdote, ao lado de sua esposa. Laura resistia em estar ali, pois não era católica praticante, e até se considerava atéia em momentos de discussões religiosas com o marido. Ele estava ajoelhado, com os olhos fechados, cabeça baixa, e as mãos espalmadas em oração e louvor suplicante. Alguma coisa muito grave ameaçava a manutenção daquele ambiente sagrado.
Ao visualizar a cena do padre subindo ao púlpito para ler um trecho das Escrituras Sagrada, Afonso sofreu um colapso, simultâneo ao instante em que o sacerdote iniciou a leitura. Apreensiva, Laura fez de tudo para reanimá-lo. Alguns fiéis, companheiros de oração, levantaram-se e prestaram socorro à vítima desacordada. Outros aumentaram a fé, fervorosos, repetindo incansáveis preces para auxiliá-los. Ofereceram assistência à esposa que, aflita, desfazia-se em copiosas lágrimas. Mas Afonso permanecia imóvel. Jazia como O crucificado. Havia perdido as funções vitais, caído naquele santuário com os joelhos dobrados, cabeça apoiada no espaldar do banco da frente, braços suspensos, pendurados ao longo do corpo.
Enquanto o padre continuava sua missa impassível, formou-se um clarão em torno do corpo desfalecido de Afonso. Todos já estavam de pé, rodeando aquela criatura beatífica que morreu ajoelhada, humilde, na mesma posição em que rezava a ave Maria. As carolas mais idosas, agradecendo a benção recebida, esperavam com plácida abnegação presenciar o fenômeno da ressurreição. Será que a igreja iria testemunhar um verdadeiro milagre? Será que teriam finalmente uma eucaristia que não fosse meramente simbólica? Os fiéis deliravam com essa possibilidade.
(...)
Tudo começou quando Afonso conheceu Laura em uma de suas aventuras anuais. Na estação ferroviária, um grupo de amigos combinou de se encontrar com Afonso para embarcarem num trem de carga, clandestinos, com a finalidade de passarem suas férias em outro estado, já que não tinham nenhum tostão furado no bolso que cobrisse as despesas com viagens. Durante o trajeto na linha férrea, o trem deu uma pequena parada para despachar algumas encomendas postais, e nesse ínterim, Laura subiu ao vagão com outras duas amigas, também clandestinamente, visando o mesmo destino do grupo de amigos e de Afonso.
Quando os olhares de ambos, Afonso e Laura, cruzaram-se, uma súbita paixão fulminou-lhes, dilacerando suas almas inquietas.
- Qual o seu nome?
Ela não respondeu de imediato. Permaneceu fitando-o perplexa. Por alguns minutos nenhum dos dois falou. Os outros viajantes mantiveram uma conversa animada e não perceberam o silêncio revelador daquele encontro. Uma aura angelical havia enlaçado os dois jovens, numa fixação hipnótica irredutível. O tempo tinha parado. Mesmo com a agitação e burburinho estridente dos companheiros de viagem, nada mais existia além daquela sintonia cósmica.
- Eu me chamo Laura.
O instante em que Laura proferiu o seu nome foi marcado por um solavanco que retirou o casal de seu isolamento amoroso, trazendo-os à realidade calamitosa que se delineava na locomotiva. O trem começou a chocalhar, chocalhar, vindo a descarrilar ao colidir com um pedregulho que tinha despencado de uma montanha rochosa. Ambos foram arremessados para uma região desértica. Apenas tiveram leves escoriações, mas ficaram impactados emocionalmente pelo trauma do que se sucedeu. Caminharam por horas intermináveis.
Após dias de caminhadas, exaustos, fedorentos, sedentos e esfomeados, chegaram a um povoado, a um aconchegante lugarejo que certamente não estava registrado nas cartografias oficiais. Foram acolhidos com hospitalidade pelos aldeões. Deram-lhes de comer e de beber. Depois os dois relaxaram numa agradável jacuzzi improvisada, um tonel feito de tábuas de madeira montado no gramado. Tomaram um duradouro e revitalizante banho e depois repousaram num confortável dormitório rústico.
Aquela espécie de colônia, cuja vida predominante se aproximava do campesinato, com exclusiva produção de subsistência, situava-se a léguas da civilização. Afonso e Laura estavam num território que, de tão longínquo, os dois poderiam se comparar a náufragos perdidos numa ilha inexplorada.
Após o acolhimento exemplar, os dois foram encaminhados a um lugar especial, perto do litoral, no qual, fincado na areia, compondo um tipo de altar, reinava soberano um grandioso crucifixo esculpido em pedra sabão. Esse monumento crístico tinha estimadamente três metros de altura. Exatamente ao pé da cruz, quatro pessoas, parecendo sacerdotes, estavam vestidas com túnicas franciscanas e usando solidéus contendo uma estranha inscrição. Os dois forasteiros, abismados, foram convocados para participarem de uma cerimônia étnica, um tipo de ritual para catequizar os silvícolas pagãos. Mas ambos já eram iniciados na ordem católica. Foram batizados e crismados.
- Será que não perceberam que somos cristãos?
- Também não estou alcançando aonde querem chegar...
- Estou tentando comunicar isso a eles, mas parece que deixaram de entender a nossa língua.
- Afonso, estou com medo!
- Vamos descobrir uma maneira de sairmos dessa confusão!
Um dos pontífices agarrou Afonso pelo braço e o puxou até o altar. Lá, havia algo semelhante a um púlpito no qual um sacerdote designado faria a leitura de mensagens apocalípticas. Colocaram-no de joelhos, vestiram-lhe um capuz e dobraram seus braços nas costas, atando suas mãos. Neste instante, Laura foi conduzida a um patíbulo para suplícios. Despiram-na e a amarraram seus braços e pernas à superfície de um cavalete idêntico ao tripalium, objeto romano no formato de tripés utilizado para torturas.
Um dos sacerdotes vociferou enfaticamente:
- Subam-na ao patíbulo! Eis o cadafalso do qual os instrumentos do suplício se erguem! O senhor patibular purificar-lhe-á sua alma fétida e pecaminosa de cortesã...
Com instrumentos considerados divinos, os sacerdotes seviciaram a moça, proferindo frases ininteligíveis. Continuaram entoando cânticos para potencializar as sevícias e, num átimo, transpassaram o corpo de Laura com uma lança semelhante a um florete, espada de esgrimistas. Laura esvaiu em sangue, estremeceu o corpo por longos segundos, deu um agonizante suspiro e morreu. Laura serviu como objeto de oferenda num macabro ritual santificado no qual o carrasco se deliciava em êxtase no patíbulo do sacrifício, realizando seus movimentos fatais em sincronia com o ritmo da leitura do sacerdote escolhido para o púlpito.
Aplicaram uma injeção contendo uma substância sonífera tão potente, que Afonso dormiu durante quase uma semana inteira. Quando acordou, estava desorientado, devido ao resíduo do sonífero que ainda se demorava em seu organismo. No momento exato em que despertou, sentiu um volume ao seu lado, em sua cama. Assustado, mas ainda assim curioso, foi verificar do que se tratava tal volume. Seria um corpo morto? Uma pessoa? Mas quem? Ao tocar na pessoa que estava embaixo das cobertas, ela se virou, apalpou-lhe o rosto, segurando-o entre suas mãos e o acariciou suavemente. Era uma bela mulher que ali ficou, ao seu lado, durante toda a semana que Afonso permaneceu dormindo. Ao lhe perguntar seu nome, ele ficou paralisado pela impossibilidade de tal revelação e, vagarosamente, após se recuperar, tentou escapar dali, recuando passo a passo.
- Eu me chamo Laura.
- Laura?! Não é verdade! Quem é você?
- Sou Laura, querido. A sua Laura.
- Não brinque comigo! Isso não pode existir! Laura morreu, eu vi. Foi brutalmente assassinada num cadafalso.
- Que isso, meu amor? Deve ser ainda o efeito da convulsão que você teve quando estávamos na praia. Sofreu uma insolação que lhe causou queimaduras graves e uma boa dose de alucinações. Os aldeões o medicaram adequadamente, e o trouxeram para este quarto. Você nos preocupou muito, pois permaneceu dormindo por uma semana inteira.
- Não é verdade!! Vocês a mataram!! Cadê minha Laura? O que você quer de mim, sua impostora?
- Meu amor, veja! Eu não mudei nada, continuo sendo a mesma.
- Saia daqui, sua assassina!!!
- O que é isso, meu Deus?!
- Afaste-se! Afaste-se!
- Os aldeões estão preparando uma solenidade belíssima para nós dois. Nós vamos nos casar, meu amor!
- Quem é você? Não é a Laura!! Não a conheço!
É... Você ainda não se recuperou do efeito dos remédios. Darei um jeito! Você ficará ótimo!
(...)
Após um mês, o matrimônio foi consumado. A missa foi celebrada na melhor capela da colônia, com direito a uma ornamentação digna da aristocracia. As festividades, com a recepção de ilustres convidados, amigos íntimos que o casal fez durante a convivência com os aldeões, foram realizadas num ambiente aberto, campo florido com margaridas, gérberas, crisântemos e tulipas. A satisfação circulava sólida e íntegra nos rostos iluminados de todos os convidados. Apenas Afonso continuava com um semblante amargo, pesaroso, mas suficientemente disfarçado para não levantar suspeitas sobre seu real estado.
Passaram-se os anos. A vida do casal foi sendo enriquecida por experiências que contemplaram uma ideal vida a dois. Os hábitos cotidianos, pelo menos aparentemente, apagaram os resíduos da absoluta convicção que Afonso tinha a respeito da identidade falsa da mulher. Ele incorporou aquela mulher à sua vida conjunta diária, mesmo ainda tendo a íntima certeza que já não se tratava mais da mesma Laura.
Afonso sabia que fora coagido, que lhe impuseram que se casasse com uma mulher que jamais vira à sua frente. Sabia que fora vítima de um plano obscuro. Mas não tinha a menor ideia sobre as razões motivadoras para que tal situação ocorresse. Qual seria a intenção daquele povo? Por que mataram a verdadeira Laura em um sacrifício e colocaram outra pessoa em seu lugar, forjando um matrimônio para uni-los? Sobre tudo isso, jamais teve explicações. De forma sensata, temendo represálias, resolveu parar de questionar e assumiu aquela mulher como sendo a mesma. Passou a fingir que nada tinha acontecido para tentar se livrar de possíveis condenações furiosas pela revelação da verdade.
(...)
Na igreja, após a morte repentina de Afonso em pleno domingo de Páscoa, um balbucio entoando uma lamúria repetitiva, lamento abafado, foi estranhamente ouvido.
- No púlpito a vida é celebrada. No patíbulo a vida é ceifada!
- No púlpito a vida é celebrada. No patíbulo a vida é ceifada!
- No púlpito a vida é celebrada. No patíbulo a vida é ceifada!
Era Laura inconsciente, de olhos arregalados, corpo enrijecido, boca trêmula. Alguns fiéis mais resistentes ao discurso dos milagres abandonaram a fascinação em testemunharem a ressurreição cristã representada pela posição da morte de Afonso, no genuflexório, e foram ao encontro da pobre Laura, submetida ao estado catatônico. Prestaram-lhe socorro imediato, levando-a para um lugar seguro, longe dos olhos de curiosos, antes que pudesse ser encaminhada para uma clínica na qual fosse cuidada e tivesse condições de repousar e se recuperar daquele trauma que a deixou em estado de choque.
(...)
- O que estou fazendo aqui? Que lugar é este?
- Estamos aqui para ajudar. Qual o seu nome?
- Eu me chamo Laura. O que aconteceu?
- Encontraram você dormindo nos trilhos do trem. Não se lembra?
- Não... Onde está Afonso?
- Ah! Você então se recorda desse nome!?
- Sim... Ele é meu marido. Só me lembro que ele foi trabalhar e não mais voltou. Fiquei esperando aflita na estação ferroviária seu retorno. Há 15 anos ele pegava o mesmo trem para o trabalho.
- Mas você não pode ter um marido chamado Afonso!
- Como não?! Afonso é meu marido!
- Quando e como se casaram?
- Há 15 anos. Foi uma cerimônia simples, apenas os pais dele e os meus estiveram presentes.
- Quais os nomes dos seus sogros?
- Francisca e Gustavo.
- E os nomes dos seus pais?
- Francisca e Gustavo.
- Os mesmos nomes dos pais de Afonso?
- Estranho... Não sei. Estou confusa...
- Sim. Estou com a sua identidade. Esses nomes são dos seus pais realmente. Veja!
- Não quero ver!!
- Eu insisto... Veja!
- ...
- Quem é você?
- Laura.
- Laura foi a filha que seus pais tiveram antes de você nascer. Laura faleceu com apenas 2 meses de vida. Você não chegou a conhecê-la.
- ...
- Qual o seu nome?
- Eu me chamo Afonso.
- Viu? Não doeu. Venha meu amigo... Eu o levarei para os seus pais. Eles já estavam preocupados...
(...)
- Meu filho! Que bom que você chegou!! O padre Abacílio disse que você passou a manhã inteira com ele, seguindo suas instruções bíblicas, mas que não sabia informar para onde você foi depois.
- ...
- Não importa saber detalhes! O importante é que você chegou na hora certa! Não irá se atrasar para a sua Primeira Comunhão com Deus! Vamos, vamos, apresse-se! O padre Abacílio já está novamente à sua espera na Igreja. Será um dia inesquecível!
CONTO ESCRITO por ALEX AZEVEDO DIAS.