O corpo é atravessado pela linguagem, pelas ressonâncias desejantes, é atravessado pela afetividade. O corpo é marcado pela dimensão mítica, ficcional, assim como diz o poeta, de uma “arte do encontro, embora haja tanto desencontro”. É marcado pela afetação das relações inter-subjetivas, das relações humanas. É construído pela ordem discursiva, pelo laço social, pelas representações imaginárias, simbólicas e pela vibrátil intensidade real, inapreensível e inominável.
O corpo é histórico, é o habitat da história de vida de uma pessoa, de seus processos criativos, de referências e desrazões, de seus fantasmas e identificações, de contradições e ambivalências, de prazeres e desprazeres, da própria individuação heteronômica de um sujeito, sempre em relação, no mundo, com um outro.
O corpo movimenta e é movimentado pelas pulsações, pelos impulsos tanto vitais, eróticos e de morte; movimentado pelas pulsões erógenas, pelas paixões transgressivas. O corpo é a instância na qual circula a palavra fundadora de uma existência, é constituído pelas trocas de experiências inter-pessoais. Palavra esta inscrita no corpo, em seu circuito pulsional, lugar do recalque primordial, fundador da cultura, da civilização. Mal-estar, fonte de desconforto, palco da grande cena inconsciente, do fervilhar das emoções, da encenação dos sentimentos, da subjetividade, das intensidades, dos sentidos e não-sentidos que fazem desejar, que fazem viver. Ser outro para encontrar a si.
O corpo fala, endereça mensagens, verbaliza, comunica-se com o outro, endereça demandas, apelos, pedidos a esse outro e, ao mesmo tempo, deixa-se afetar pelos dizeres sociais, pura afetação. O corpo não tem nem dentro nem fora, o corpo é simultaneamente interno e externo, pois a vivência pessoal está intimamente associada à vivência social. Mesmo desamparado em seu desejo, pois não é sem isso, ordena-se numa coletividade, num laço social.
O corpo sofre. A dor é do organismo, em sua função mecânica, mas o sofrimento, este sim é do corpo, berço do inconsciente e da subjetividade. O organismo é natural, biológico. Já o sujeito não tem nada de natural. O sujeito é uma ficção circunstancial, é folclórico, produzido pelas contingências, mas possui uma realidade, “a realidade psíquica”.
É nessa demanda de amor e de acolhimento, de ser desejado pelo outro, que se inscreve a transferência. Transferência que só se estabelece como vínculo de trabalho, na suposição de um saber do outro, pelo sujeito, que possa dar um lugar a seu sofrimento, que possa dar uma existência e legitimar o seu desejo. É nesse lugar de endereçamento ao outro, visando minorar a sua angústia, que desabrocha a ambígua porém mágica função da transferência; de difícil manejo, mas a própria condição de possibilidade de um tratamento.
A dimensão da transferência se circunscreve no campo da afetividade, construída enquanto causa de angústia e de desejo. A transferência emerge numa especificidade, num espaço potencial de criações subjetivas entre o sujeito, suas projeções e fantasmas, e a presença do analista. O analista como um depósito dos saberes e dos afetos inconscientes do analisando (paciente), estando sua função autorizada pelo discurso do analisando, como um ato performático, uma investidura do ser falante, do analisando. O paciente deposita seu saber, atualizando em ato suas reminiscências, de caráter exclusivamente intra-psíquico, intra-subjetivo, em relação ao material recalcado do sujeito do inconsciente, presentificado na transferência com o analista.
Então, na transferência, no que concerne à função do analista, faz-se essencial um acolhimento do sofrimento que o sujeito lhe endereça, operando a função da escuta. É importante, por mais que haja divisões de saberes, construir um suporte que pontue uma falta-a-ser, uma suspensão do conhecimento sobre aquele sujeito, suscitando a sustentação de um saber que se sabe descompleto, descontínuo, sabendo não-saber.
Por um fracasso na sustentação das fantasias do sujeito, por se perceber não tendo, faltando ter amor, sabendo não ser amado, que o sujeito se submete às dores da falta-a-ser e se dirige a um analista, na ilusão, necessária no início de uma análise, que ele saiba sobre si. Esse suposto saber endereçado ao analista, pedido de amor, não respondido, vai sendo desconstruído ao longo da análise, caminhando para um desidentificação, uma desidealização desse amor impossível, deslocando-se do lugar angustiante de se saber objeto do amor do outro.
A função do analista representa um lugar em que a especialidade se dissolve. Uma análise, sempre do caso a caso, do um a um, em sua singularidade, não se origina nem se conclui como um saber especializado, intitulado por uma qualificação ou capacitação. A função do analista é uma especificidade de escuta, de interpretação do desejo do outro, jamais se reduzindo à especialidade acadêmica. Geralmente, os discursos de saúde, transmitidos na academia, são pacotes prontos, cabendo ao profissional sua aplicabilidade prática. O discurso da psicanálise é uma "douta ignorância", pois o analista nada sabe enquanto o paciente não falar sobre suas questões. É o paciente que elabora, que ressignifica seu sofrimento, e o analista fica como o suporte desse processo, conduzindo as interpretações que o próprio paciente vai fazendo sobre seu desejo, ao longo da análise.
Freud recomendou um tripé de formação, colocando a prioridade, a sílaba tônica, na análise pessoal do analista, seguida da supervisão de seus casos clínicos e muito estudo teórico. A formação do psicanalista vai se produzindo gradativamente, quando o próprio analista começa a poder escutar seu inconsciente, somente quando se implica numa análise com outro psicanalista. É somente no divã de outro analista, que o psicanalista pode desenvolver seu tato para escutar as sutilezas e as particularidades do desejo do outro, descolando-se desse outro, tomando uma distância, na dimensão de sua presença, para abrir sua sensibilidade à fala do Outro, para se dispor a ouvir o forasteiro, o estrangeiro, aquele que não faz espelho com o eu, embora o forasteiro seja justamente a parcela mais íntima do ser falante.
A pessoas esquecem, apenas lembrando-se de suas ficções, invenções, jamais se lembrando do real. Elas esquecem, e isso que esquecem, entendido como o maligno Outro que fala por elas, sempre se sentindo incapazes de desejar tais coisas, não passa do que elas mais são, embora, para se manterem uniformes, iguais aos padrões, não admitem, permanecendo outrinhos falsos, não se apropriando de seu Outro verdadeiro.
Voltando à formação do analista, é só escutando a si, que o analista pode escutar o "não-si", escutar a alteridade, o radicalmente diferente. A especificidade singular de cada história pessoal se condensa e se desdobra, e o paciente pode inscrever algum conteúdo novo na lacuna de suas angústias, que é suportada pelo analista para que um novo sentido surpreenda a ambos na experiência de análise. É só aí, em transferência, que o sujeito pode constituir a singularidade do seu desejo, inscrevendo-a como um saber próprio, no lugar dos seus vazios, antes traumáticos, transformações testemunhadas e sustentadas pela escuta silenciosa e presente, oferecida pelo analista.
O analista faz um convite, oferecendo a possibilidade do paciente mergulhar em suas angústias, fronteira tênue, frágil, de sua mais exterior intimidade, e isso é muito difícil de ser sustentado ao longo do tratamento. O paciente se confronta com a sua falta de saber, com seus fracassos, com sua intimidade rejeitada e jogada para o exterior. Mas quanto mais o interior é lançado para o exterior, retorna pressionando, exigindo ser reconhecido, exigindo um nome, demandando existência. A análise funciona para que o sujeito possa legitimar a sua existência, na intimidade de seu exterior, na exterioridade de seu interior, produzindo a singularidade do seu desejo, sempre heterogêneo, assinando seu nome, e inscrevendo-o como único.
Um saber não deve se sustentar como impermeável, mas como resultado de um trabalho feito por muitos, dissolvendo os especialismos, num espaço multidisciplinar, construindo as porosidades pelas quais se atravessam os saberes. Saberes estes nunca se supondo totais, mas sim castrados, possibilitando a sustentação do não-saber, da falta de saber que todos nós carregamos pelo braço, às vezes nas costas, domando-nos. Mas o reconhecimento dessa falta, embora apareça como ferida narcísica, corte em nosso orgulho e vaidade, é condição essencial para a troca simbólica e para a re-invenção do desejo, no seu tempo de elaboração. Assim, nesse intervalo, o sujeito pode produzir o seu próprio saber, na lógica da verdade que é sempre de cada sujeito, no caso a caso.
Texto escrito por Alex Azevedo.
P.S. Reescrevi hoje, dia 11/10/10, meu texto que escrevi e publiquei originalmente em 2008.
Referências Bibliográficas:
ELIA, Luciano. “Corpo e Sexualidade em Freud e Lacan”, Rio de Janeiro. Editora: Uapê, 1995.
FREUD, Sigmund, “Dinâmica da Transferência” (1912), volume XII, Rio de Janeiro, Imago, 1969.
_______________: “Observações Sobre o Amor Transferencial” (1915), volume XII, Rio de Janeiro, Imago, 1969.
_______________: “Recordar, Repetir e Elaborar” (1914), volume XII, Rio de Janeiro, Imago, 1969.
_______________: “Sobre o Narcisismo: uma introdução”. Edição standard brasileira das obras psicológicas completas de Sigmund Freud, volume XIV. Rio de Janeiro: Imago.
LACAN, Jacques. “O Estádio do Espelho como Formador da Função do Eu”. In: Escritos, Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1998.
______________: “Função e Campo da Fala e da Linguagem em Psicanálise”. In: Escritos, Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1998.