terça-feira, 17 de setembro de 2013

Devastação: Uma Família.






Devastação: Uma Família.
Autor: ALEX AZEVEDO DIAS.

Enquanto a mãe assistia à novela esparramada no sofá da sala, Samanta entrou sorrateiramente. Amarrou a blusinha na altura do umbigo, maquiou-se, colocou uma saia rodada abaixo da cintura encontrada no armário da mãe - que, de tão grande, arrastava no chão -, pôs um avental, a fralda descartável do seu irmãozinho recém-nascido na cabeça e se sacolejou freneticamente diante da TV.

Haidê, perante a cena que julgou extravagante, levantou-se com fúria, agarrou a filha pelo braço, deixando-lhe marcas vermelhas pela pressão dos dedos na pele branca, e, com o dedo em riste, ordenou que se limpasse, voltasse para seu quarto e que de lá não saísse até o término de sua novela. A menina, confusa, engoliu o choro que lhe fustigava os olhos, franziu o cenho, expressando uma leve agonia e se retirou. Ainda ouvindo algo que interpretou como um soluço baixinho, Haidê berrou da sala para que Samanta parasse imediatamente de soluçar, ameaçando ir até seu quarto lhe dar uma surra com o cinto do seu pai.

Afrânio, pai de Samanta, apareceu na sala com ares de tensão e pediu calma à mulher. Disse que não compreendia o incômodo que a filha lhe causava. Queixou-se dos maus-tratos dispensados à menina de apenas sete anos. Haidê, endereçando ao marido um olhar severo, comentou que apenas a protegia do mundo machista. Afirmou que não aceitava que Samanta fosse vista pelos vizinhos como desfrutável e oferecida. E ainda condenou a educação que Afrânio dava à filha, exigindo que ele não fosse permissivo para não fazer de Samanta uma potencial prostituta. O pai acatou as cobranças de Haidê, esfregou a toalhinha em seu rosto, enxugando-o por causa da barba que acabara de fazer. Voltou ao banheiro, arrumou a bagunça criada pelos asseios noturnos e se sentou ao lado da mulher no sofá, aconchegando-se.

Quando a novela acabou, Haidê se retirou em direção ao quarto de casal. Amamentou o pequeno Lucas, colocando-o em seguida para arrotar. Embalou o bebê, balbuciando uma canção de ninar e, carinhosamente o devolveu ao berço. Foi ao banheiro do quarto, tomou um banho demorado, pôs o pijama e foi se deitar, chamando o marido para ir dormir também. Afrânio permaneceu por mais algum tempo sentado no sofá, remoendo alguns pensamentos que insistiam em não abandoná-lo. Antes de ir se deitar, desviou o percurso, indo antes ao quarto da filha. Já estava com a luz apagada.

O pai abriu a porta que estava encostada, caminhou silenciosamente para não acordar Samanta, ajeitou-lhe os lençóis e lhe beijou a testa ao se certificar que os olhinhos da filha permaneciam fechados. Após Afrânio ter saído e encostado a porta novamente, Samanta abriu os olhos, acendeu a luz fraquinha do abajur, sentou-se - apoiando as costas no encosto da cama -, e deixou que uma lágrima escorresse até os lábios, ainda com um restinho de batom.

Aos quatorze anos, Samanta sonhava com a magia de uma grande feste de debutante. Haidê havia lhe prometido alugar um salão, contratar um buffet especial e confeccionar um belo vestidinho rosa para que ela flutuasse durante a valsa. Às vésperas de completar quinze anos, Samanta já tinha distribuído a maioria dos convites para uma quantidade seleta de convidados, quando seu pai a chamou para que conversassem no canto da sala. Afrânio, com certa dificuldade para se expressar, numa desconfortável gagueira e transpiração desagradável - afrouxando o colarinho com frequência para melhor deglutir o excesso de saliva -, comunicou à filha que a renda doméstica não fora suficiente para arcar com as despesas da festa. Os olhos da filha umedeceram, deixando que algumas gotinhas transbordassem.

As lágrimas escorregaram para as maçãs do rosto, depositando-se no queixo, para que, concluindo a jornada, caíssem no granito desbotado. O dia do seu aniversário foi um dia normal, como outro qualquer. Apenas à noite, quando foi à cozinha comer biscoitos e tomar um copo de leite, viu que a mesa estava posta. Havia uma toalhinha simples, uma garrafa de refrigerante, alguns copos, manteiga e pão. Avistou aquilo tudo com certa frustração. Quando já estava de saída, a mãe entrou com um bolinho e velas acesas, formando o número quinze. Samanta forçou a saída, tentando se desvencilhar da mãe, mas Haidê a segurou e a faz se sentar à mesa. Seu pai apareceu na cozinha com Lucas, já com sete anos no colo, batendo palmas e cantando parabéns.

Logo depois da cantoria, Haidê tirou as velinhas e, munindo-se de uma espátula, cortou a primeira fatia do bolo e a deu para Lucas. Em seguida ofereceu a segunda fatia para Afrânio. Cortou a terceira fatia, sentou-se e começou a comer. Samanta se virou para a mãe e, emburrada, perguntou se ela não a serviria. Haidê fulminou a filha com o olhar e disse que ela a criou saudável, com pés e mãos no lugar. Argumentou que por causa disso, a filha poderia muito bem cortar a própria fatia de bolo. Impulsionando o corpo com as pernas, Samanta arrastou a cadeira no chão, fazendo um barulho estridente, levantou-se com violência e foi para o quarto sem dizer nenhuma palavra.

Haidê olhou para Afrânio, apontou em direção à porta da cozinha, balançou a faquinha do bolo no alto, com o braço esticado, e vociferou aos quatro ventos o ódio que sentia daquela filha ingrata e desnaturada. Quase dois meses depois do seu aniversário de quinze anos, Lucas completou oito. Seis pais, satisfeitos com aquela data especial, cobriram o filho de mimos e presentes. Ao entardecer, vários convidados apareceram. Bexigas de gás coloridas enfeitavam a sala. Salgadinhos diversos, cachorros quentes, pipocas e refrigerantes eram ofertados aos convidados com entusiasmo. Samanta, revoltada, trancou-se em seu quarto e de lá só saiu quando o último convidado se despediu.

Quando estava com dezenove anos, Samanta se preparava para se mudar da casa dos pais. Inscreveu-se para uma faculdade rural, distante dali. Estudou muito, passou no vestibular e se matriculou no curso de veterinária. Como sempre fora uma aluna exemplar, juntou um dinheirinho com as aulas particulares que ela dava a seus colegas. Nunca contou aos seus pais sobre essa atividade que exerceu ao longo de três anos, temendo ser duramente reprimida, principalmente pela mãe. Seu pai a ajudara a escolher o apartamento, comprometendo-se a contribuir com o dinheiro do aluguel. Mas, aprendendo a não confiar nas promessas feitas por seus pais, tratou de se antecipar e arranjou um emprego para cuidar das crianças numa pequena escola da região para a qual se mudaria.

No dia em que arrumava suas bagagens, deixou em cima da cama, esticados para passá-los, os melhores vestidos, separando-os das roupas mais simples. Samanta foi à área de serviço buscar um ferro de passar roupas. Quando voltou ao quarto, encontrou seus vestidos rasgados. No exato instante em que visualizou tal aberração, levou a mão ao peito, sobressaltada, e deixou escapar um gemido em desabafo. Ao olhar para o canto do quarto, viu Lucas, já com quase doze anos, abaixado, prendendo o riso de deboche, segurando uma tesoura prateada de cabeleireiro. Inconformada, bufou de ódio e pulou em cima do irmão.

Já com a visão turva pela embriaguez da exaltação, desferiu um tapa no rosto de Lucas e lhe tomou a tesoura. Segurando o instrumento cortante com firmeza, avançou de encontro ao irmão, ameaçando-o de perfurá-lo. Lucas gritou pela mãe. Haidê surgiu rapidamente, impondo com agressividade que Samanta soltasse a tesoura, acusando-a de querer matar seu filhinho. Samanta se virou em direção â mãe, apertou mais o cabo da tesoura e, resistindo aos protestos da mãe, inclusive se alimentando deles, saltou, segurando a tesoura com o braço para o alto. Quando a filha chegou com o objeto pontiagudo perto do pescoço da mãe, Haidê a agarrou pelo pulso. Samanta a olhou nos olhos e logo relaxou os dedos com os quais pressionara a tesoura.

A palma de sua mão já apresentava vermelhidão de tanto ter comprimido o instrumento. Ela, instintivamente, deixou que a tesoura caísse no chão. Quando Haidê, contraindo a face, irascível, virou as costas da mão para lhe dar uma bofetada, foi a vez de Samanta segurar a mãe pelo pulso e impedir o golpe. Raivosa por ter sido desafiada, tentou golpeá-la com a outra mão. Novamente Samanta se defendeu. Quando a mãe tentou se esquivar das mãos que lhe apertavam cada vez mais seus pulsos, Samanta a soltou para acertar em cheio, com toda força, um tabefe na face esquerda da mãe. Haidê se curvou, levou a mão à face atingida, endireitou-se e arregalou os olhos, incrédula, em direção à filha. Samanta, raivosa, vomitou todas as palavras que há anos permaneceram entaladas em sua garganta:

- Você nunca me amou. Eu sempre fui maltratada por você. Mas fique sossegada, eu só não te odeio porque você não é digna do meu ódio. Meu pai, aquele banana sem atitude, a merece. Vocês se completam. São um casal detestável: a megera, a serpente e o ratinho débil com o qual se alimenta. Você devora tudo a sua volta. Você só não me destruiu porque eu sou mais forte. Tive coragem, sei me virar sozinha. E vou além: para o meu bem, é necessário que eu decida a minha própria vida. Antes só do que mal acompanhada, ensina o ditado famoso. Deem tudo para a peste do Lucas. Mimado, malcriado. Vocês ainda sofrerão muito nas mãos desse moleque.

Após a última frase, Samanta pegou uma pequena mala com documentos e pertences, girou a maçaneta, abriu a porta e deixou que batesse com violência às suas costas. Foi embora sem se despedir nem olhar para trás. Todos ficaram atônitos, sem reação, e não tentaram impedi-la de sair.

Durante os primeiros meses, Afrânio depositou dinheiro na conta da filha, ajudando-a com as despesas. Após esse período, alegando rombo no orçamento doméstico, cortou gastos desnecessários, incluindo Samanta. Nunca mais recebera um tostão furado. Mas, com os esforços pessoais, sobressaiu-se na faculdade e logo conciliou uma bolsa de pesquisa com o trabalho no colégio que arrumara antes de viajar, além de ter conquistado um estágio remunerado num haras local de puros-sangues. Conseguiu manter o aluguel do imóvel, montando-o do jeito que idealizara.

Mais tarde, considerando-a uma boa moça e pretendendo vender o apartamento, o proprietário combinou uma maneira de que ela adquirisse o imóvel com o suporte de uma financiadora, passando-o então para o seu nome. Somente nas primeiras férias de final de ano, Samanta visitou os seus pais. Mas a tensão naquela casa era tão insuportável que nunca mais voltou.

Fixou residência definitiva na cidade de seu curso universitário. Ao se formar, já estava com emprego garantido para exercer sua profissão no haras no qual estagiou. Abriu também uma clínica em sociedade com um colega. Logo se casaram e tiveram uma filhinha. Sua vida se estabeleceu, cresceu, multiplicou-se. Vivera feliz, apesar de que seus pais e seu irmão jamais lhe fizessem uma única visita.

Conto escrito por Alex Azevedo Dias.

sábado, 14 de setembro de 2013

Amor Espelhado.







Amor Espelhado.
Autor: ALEX AZEVEDO DIAS.

Sentada na beirada da cama, Leila avaliou o espelho retangular encostado na parede. Meses se passaram e ele ficara lá, jogado de lado. Era o objeto dos seus sonhos. Mandara fazer sob medida. Poucos dias antes daquele desaparecimento, sem que soubesse, estava no auge da felicidade. Queria se ver por inteira, abraçada ao seu amor, diariamente, quando se levantasse pelas manhãs, após as sempre memoráveis noites de sono ao lado de Lipe.

Os dois foram à vidraçaria, escolheram um espelho resistente, porém delicado, que refletisse a imagem com exatidão, sem que engordasse nem emagrecesse. No comprimento, cortaram vinte centímetros além da altura de Leila para que Lipe coubesse atrás, de pé, envolvendo-a com seus longos e afetuosos braços. De largura, um pouco mais de meio metro já seria de bom tamanho. Enquanto Lipe se encarregava de negociar as dimensões ideais com o vidraceiro, Leila foi a uma loja especializada em quadros e combinou que montassem no espelho uma moldura de jacarandá, entalhada, com um detalhe folheado a ouro. Era tudo o que ela mais queria.

Depois que a preparação foi concluída, levaram a estimada peça, com cuidado, para casa. Para que o espelho fosse colocado com segurança, precisava de uma armação apropriada. Na véspera do objeto de desejo ser colocado em seu devido lugar, Leila soube, por uma antiga amiga, que Lipe se acidentara numa autoestrada, bem próximo ao seu trabalho. O acidente que o vitimou fora fatal. Leila não deu nenhuma resposta à amiga. Permaneceu por alguns segundos, estática, segurando o fone enquanto a outra a chamava pelo nome em vão do outro lado da linha. Com os olhos fixos no nada, foi se encolhendo na cama. Suas mãos se abriram vagarosamente até que o fone escorregasse pelos seus dedos e batesse mudo, no carpete do quarto.

À noite, após o triste episódio, Leila se deitou no vazio. A falta de Lipe derrubara uma lágrima dos olhos da mulher que se recusava a olhar para a realidade. Por quase uma semana, ela não saiu da cama. Abandonou-se à sombra deixada pela ausência do amado. Antes, pés e mãos reprimidos, corpo tenso, deitada de lado, quase na posição fetal, manteve-se em silêncio absoluto, com olhos bem abertos, sem conciliar o sono. Depois, entregando-se à tontura cruel, foi ajeitando-se para o meio da cama até adormecer no lado de Lipe, ainda aquecido pelos fantasmas da falta que a perseguiam.

Naquele dia, pôs finalmente o espelho na parede. Com um vestido preto, longo, de gola canoa, tecido fino que Lipe a presenteara no primeiro ano do matrimônio, Leila a contemplou em frente ao espelho. Deixou por algum tempo seus cabelos presos, com apenas algumas mechas flutuando em liberdade, até soltá-los totalmente. Quase não conseguiu vê-la. Seus olhos, teimosamente, deslizaram-se para os vinte centímetros que celebravam a crueldade de um sumiço irreparável. As cortinas da janela, entreabertas, balançavam pela fresta de vento. Olhou para as finas alças que deixavam seus ombros desnudos e abaixou uma a uma até que as alças escorregassem por toda a extensão dos seus braços. Sem as tiras de pano que o sustentavam no corpo de Leila, o vestido desceu até cair embolado sobre seus pés.

A palidez e a magreza não eram defeito da superfície espelhada. O objeto dos sonhos transmitira a mais perfeita imagem. Mas agora, enegrecido pela saudade, Leila observava apenas o seu desamparo. Deu um passo para trás, dobrou os cotovelos às costas, e desprendeu o sutiã. Retirou suas alças e o arremessou à cesta de roupas esquecidas. Seus seios de boa proporção e bem delineados perderam a densidade. Sentia-os somente ao serem apalpados pelas fervorosas mãos de Lipe. Envolvia-os por completo até enrijecerem pelo calor erótico. Sem suas mãos, esmoreciam, perdendo a vitalidade e o frescor.

Leila levou o dedo indicador à boca e o umedeceu com a língua. Em movimento circular, suavemente, acariciou os mamilos. Soltou um gemido, em homenagem ao prazer perdido. Depois, levantou os seios e espalmou as costelas proeminentes. Deu um passo à frente e se desvencilhou da calcinha rendada vinda de um passado que ela resistia em recordar. Nesse instante, sentiu uma mão masculina separando suas pernas e tocando seus pelos pubianos. Um esgar de excitação crispou seus dedos sobre a mão do homem à altura do seu sexo. Instintivamente fechou os olhos. Era Lipe. Visualizou todos os detalhes daquele corpo amado. Entregou-se ao prazer. Os vinte centímetros se preencheram com beijos e tremores.

Ao abrir os olhos, não se sentiu só. O espelho continuou encostado na parede, fora do lugar, virado ao contrário. Leila esticou um dos braços para sentir Lipe, mas tocara nos lençóis amassados. Mas o calor do seu corpo não deixara sua cama. Uma força incontrolável a fez se jogar de bruços sobre o lado quente do amado. A ausência de Lipe não mais o apresentava no íntimo de Leila. Era sua presença indelével, pegadas sublimes do amor, que se ausentara de dentro daquela casa para viver no eterno abismo de sua alma.

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Conto escrito por Alex Azevedo Dias.


quarta-feira, 11 de setembro de 2013

Brincando com Fogo.








Brincando com fogo.
Autor: ALEX AZEVEDO DIAS.

Riscou um fósforo. O aroma das tábuas o fascinava. Curvou-se em reverência. A falta de luz chegara num bom momento. Já há algum tempo observava, pelo olho mágico, a movimentação da mudança. Sua porta quase toda comida por cupins dava um toque contraditório aos riquíssimos móveis que saíam do apartamento vizinho. Os moradores de frente encaixotavam seus pertences para levá-los à nova residência. Inúmeras caixas de papelão o tiravam do sério com frequência.

Os entendidos diziam que Osmar tinha fetiche por celulose. Mas ele negava tais afirmações. Afinal, os livros não lhe causavam tanta atração. Pelos móveis, tinha verdadeira adoração. Outros, talvez com menos conhecimento do assunto, insistiam em dizer que Osmar era piromaníaco. Ele odiava essa palavra. Não tinha instinto incendiário. O que o satisfazia mesmo eram os estalos da madeira retorcendo pelo fogo. Elementos naturalmente inflamáveis não lhe interessavam.

Combustíveis em geral não possuíam a menor graça. Não que fosse um protetor das plantinhas indefesas, mas muito lhe doía a mortandade dos vegetais. Não admitia que tantas árvores fossem derrubadas, florestas devastadas, desmatamentos a torto e a direito, tudo isso para melhor reconfortar a preguiçosa humanidade. Osmar não se sentia um compulsivo. Não gostava de queimar as coisas sem justa causa. Só queimava celulose. Ele não matava as árvores, apenas botava fogo no que já estava morto.

Ateava fogo aos cadáveres das pobres plantas, usadas para servir as donas de casa - verdadeiras assassinas. O cheiro da madeira, principalmente as maciças, inebriava Osmar. Detestava compensado - madeira moída e prensada. Não queimava compensados, apenas os levava para sua casinha de campo e os enterrava no quintal para que apodrecessem. Ele não resistia à fragrância celulósica. Nas artes plásticas, amava a natureza morta não pela pintura na tela, mas pelas madeiras que emolduram a maioria dos quadros.

Quando sua mãe bateu as botas, Osmar tentou de tudo para sepultá-la com a dignidade que merecia. Pesquisou a madeira que seria a mais indicada para o caixão de uma senhora ilustre. Ficou entre o cedro e a cerejeira. Mas, por ironia do destino, sua mãe chegara ao velório num caixão de plástico. O argumento dado, foi que o tal plástico era ecologicamente correto, feito de uma resina fibrosa extraída das cascas de coníferas. Osmar estremeceu. Ficou perplexo. Soltou um berro estridente, saiu desembestado do recinto e reapareceu com uma tocha acesa. Os convidados, em desespero, amontoaram-se para fugirem do órfão insano que ameaçava a todos com chamas.

Num átimo de loucura, Osmar sacudiu a tocha até formar uma circunferência incandescente. Depois, foi queimando as coroas de flores e as pétalas de rosa até que o fogo se espalhasse e atingisse o caixão da mãe. O velório se transformou num crematório antecipado. Foi preciso que os bombeiros fossem chamados para conter as chamas. O caos se instalou. Nada restou da mãe. Osmar ficara por algum tempo internado no hospício. Após a alta, foi morar na antiga residência da mãe e, desde então, só colocava fogo em pequenas tábuas, armários, escrivaninhas e alguns caixotes. Tudo isso em sua casinha de veraneio. Jamais fora visto queimando nada no condomínio de sua mãe.

Mas naquele dia, não resistiu à tanta oferta de madeira no corredor do seu andar. Durante a madrugada, na calada da noite, Osmar saiu de casa com querosene e uma caixinha de fósforos. O breu engolira todos os objetos. Ao primeiro passo, as luzes de emergência acendeu. Mas nem um minuto depois, apagaram-se. Tudo ficara novamente na escuridão. Osmar sentiu que tivera sorte, pois assim passaria despercebido conforme planejara. Despejou várias garrafas de querosene naquela madeira toda dando sopa. Deu um passo para trás e riscou o fósforo.

Curvou-se solenemente e, num peteleco, atirou o fósforo aceso em cima da madeira embebida em material comburente. Um clarão repentino, que sucedeu a uma leve explosão, lambeu o corredor por inteiro. Já com a pele rachando e borbulhando pelo calor excessivo, Osmar dera a última gargalhada, uma gargalhada fantasmagórica que ficara agarrada às paredes do prédio como a fuligem do carbono.

Ao amanhecer, Osmar se levantou assustado. Tivera um pesadelo tenebroso. Amava tacar fogo em celulose, mas há muito tempo não cometia tais insanidades pirotécnicas. Estranhou ter acordado todo ensopado. Os lençóis estavam empapados por um líquido amarelado e de odor insuportável.

Não realizara seus supostos impulsos incendiários, mas também não escapara da punição dos deuses. Estava deitado sobre sua urina fétida. Pelo menos, molhado e humilhado, comprovara o ditado dos seus avós sobre os perigos de brincar com fogo.

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Conto escrito por Alex Azevedo Dias.