sexta-feira, 9 de março de 2012
quarta-feira, 7 de março de 2012
Absinto.
Deixou o copo escorregar. O vidro gélido escapou por seus flácidos dedos. Parecia que o tempo entre a queda e o primeiro contato com o solo eternizara-se. Um suspiro profundo se fez ouvir, abafando o já inaudível impacto do objeto. Esfacelado, reduzido à insignificância de lascas perfurantes, seu coração ainda ruidosamente estalava. O copo, fabricado com um material resistente, absorveu o impacto, mantendo-o intacto, sem nenhuma deformidade.
Corpo quebrado. Copo inteiro. As mãos suadas, trêmulas, logo após receber aquela revelação, e a dose de absinto fora derramada ao chão. Nem seu adorado aperitivo - a fada verde dos poetas -, que Poe, cerimonioso, bebericava sempre ao entardecer, resistiu às palavras invasoras. Provocou-lhe irritações no estreito canal auditivo. Depois de derrubar o copo, levou a mão, com dificuldade devido aos espasmos, ao ouvido ferido. Uma dor lancinante impedia que raciocinasse.
Poe inquieto, quase sucumbindo à náusea, notou a umidade no ouvido machucado pelo verbo devastador. Uma gota escarlate ficou à deriva, oscilando como pêndulo no lóbulo da orelha esquerda. Limpou a boca com um guardanapo rasgado, desfazendo-se dos resíduos da bebida, e, com o restante do papel, tentou enxugar o líquido espesso persistente. Ao aproximar o papel dos seus olhos, nenhum vestígio que comprovasse o material que expelia do ouvido em abundância. O pedacinho de papel manteve sua brancura irretocável.
Balançou a cabeça para um lado e para o outro, buscando afastar pensamentos negativos. Mesmo sem ser bem sucedido em sua empreitada, encostou-se ao balcão para pedir ao garçom uma nova dose de seu aperitivo predileto. Tinha absoluta certeza, confiando no diletantismo alcóolico do poeta Baudelaire, que o absinto seria capaz de inebriá-lo, embevece-lo, diluir todas as suas mágoas e frustrações. Tragou a bebida em duas goladas veneráveis. Novamente cedeu ao impulso de enxugar a boca, mas dessa vez usou o dorso da mão como qualquer bêbado em botequim de beira de estrada.
Ao se lembrar de seus autores preferidos, a velha frase de seu pai – leitor voraz, quase compulsivo -, tocou fundo em sua alma. “Um bálsamo para os olhos”, ele dizia. Amava aquele homem, embora não o perdoasse por desperdiçar os últimos dias de sua vida com a fraqueza do vício. Morrera de ataque cardíaco sobre o feltro de uma mesa de Pôquer. Nem a infinita sabedoria dos seus livros o salvou. Poe não herdou o gosto pela jogatina de seu pai. Já a voracidade pela leitura o levou para a mesma sorte do seu velho. Não jogava, mas bebia. Justamente o absinto, que seu pai odiava. Mas Poe sempre repetia com entusiasmo que era a bebida dos grandes escritores. Outro apreciador de tal aperitivo, escritor misterioso, era a quem devia a inspiração do seu nome. Talvez nem mesmo eles pudessem evitar o desfecho trágico de Poe, ou, por isso mesmo, ainda mais o quisessem.
Ao se preparar para tomar a terceira dose da fada verde, Já com o copo entre os lábios, a imagem de Ritinha se impôs. Paralisou-se. Permaneceu segurando o copo com a mão direita, apoiando-o no lábio inferior. Mesmo perante a esquiva, a contemplação se fez imperiosa. Ritinha, a mulher virtuosa com a qual passava do riso às lágrimas em frações de segundos, sua fiel companheira na arte da enganação, levou-o à ruina no mesmo espaço de tempo que o fazia rir e chorar. Poe não sabia se seria possível recuperar-se daquele duro golpe. Remoía sem parar os acontecimentos que lhe comprimiam as têmporas já martirizadas pela dor da perda.
A presença de Ritinha não o deixava em paz. Continuou lá, atormentando-o lentamente em sua concupiscência. Pretendia gozar com toda crueza. Seu caso já havia sido desfeito. O abalo que o corrompeu era previsto antes mesmo de começarem qualquer coisa. Poe, imóvel, na mesma posição, com o copo entre os lábios, contendo um restinho de absinto no fundo, distante de sua boca, sentiu uma comichão percorrendo-lhe a garganta. Teve impulso de se coçar, mas a sensação da coceira era interna. Conseguiu inclinar mais o copo para ingerir a gotinha final da bebidinha sagrada. Passou como ácido, queimando a garganta que latejava em carne viva.
De repente, tudo fez sentido.A alegria da revelação entrelaçara-se à agonia da realidade que tanto Poe quis afastar. O desespero arranhou a porta de suas entranhas com unhas inflamadas de abutre. A claridade o cegou. Tanta luz. Tanta dor. Ritinha estava morta! Os dedos flácidos de Poe não suportaram mais segurar o copo. De rosto enrijecido, esculpido em cera, nem se deu conta que o copo de vidro, contendo apenas uma gota de seu líquido querido, escapulira de sua mão empapuçada pela transpiração fugidia.
O copo foi ao chão e se estilhaçou em inúmeros caquinhos. O que sobrara do absinto, derramado pelas ranhuras do piso de tábua corrida, jazia inerte à espera das lambidas de algum animal sedento que passasse por ali. De súbito, Poe se sentiu revigorado. O corpo fortalecido. Não mais seguiria o destino traçado por seu pai. Poe se levantou - corpo ereto, sem cambalear -, esfregou a testa com o antebraço, abriu bem os olhos, e seguiu em direção à velha biblioteca da antiga moradia.
Já na casa herdada de seu pai, Poe se sentou na confortável poltrona destinada ao anfitrião e se pôs em frente à lareira. Virou a cabeça para a esquerda, mirando a extensa estante de livros. Estava decidido. Precisava mata-lo. Seu pai, mesmo já falecido, ainda não morrera em sua mente. O plano que arquitetara, e que colocaria em prática, enterraria definitivamente a mórbida lembrança de aquele ser abominável que chamara de pai. Pegou um por um. Livro por livro, lançando-os à chamuscada lareira. Coleções inteiras foram depositadas sem nenhuma piedade para que as chamas as consumissem. Poe apanhou o querosene, desatarraxou a pequenina tampa de plástico, e derramou todo o líquido da garrafa na pilha de livros. Riscou um palito de fósforo, e, num peteleco, arremessou-o flamejante para seu destino incendiário.
O som da contorção agonizante das páginas reduzidas a cinzas foi ouvido como o estalar de carvão molhado. Todo o horror daquele velho sem coração explodia num bailado de fagulhas e labaredas. Poe aspirava a fuligem expelida da lareira com uma satisfação ímpar, inenarrável. Foi aí que sentiu novamente o gotejar de uma substância espessa de sua orelha esquerda. Levou a mão até ela, na esperança de descobrir se realmente se tratava de sangue ou de outra secreção, mas sua mão retornou seca, sem nenhum vestígio que explicasse tal sensação.
Algo próximo aos seus pés chamou-lhe a atenção. Viu uma página rasgada do livro de Edgar Allan Poe, do poema “O Corvo”, com uma intrigante mancha escarlate. Percebeu que aquele borrão avermelhado estava aumentando intensamente. Gotejava do teto. Passou novamente a mão em sua orelha. Não era do teto. Era dele que escorria o líquido escarlate. Ficou atônito diante dos fatos. O fluxo escarlate só se avolumava. Olhou para a página suja. Contornado pelo líquido vermelho de sua orelha, o nome daquela mulher ressaltara diante de si: Ritinha. Era uma dedicatória. Ele a amava...
(...)
Os bombeiros não conseguiram conter o fogo que lambeu toda a casa de Poe. Estava condenada. Sem recuperação. Todos os pertences foram perdidos, carbonizados, engolidos pelas chamas ardentes. A perícia investigou as causas do incêndio. Não havia objetos que comprovassem a autoria de nenhum crime. Apenas um pedacinho de papel, provavelmente da página de algum livro, chamuscado nas bordas, fora salvo do incêndio, nada mais. “Um bálsamo para os olhos”, a única frase que podia ser lida.
CONTO ESCRITO por ALEX AZEVEDO DIAS.
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