O químico Jurandir detestava a química. Não havia a menor empatia com seu objeto de estudo. Suas fórmulas nunca resultavam em compostos originais. As substâncias, mesmo miscíveis, jamais se misturavam. Nem ao menos explosões – coisa de cientista maluco de telenovelas – nada queriam saber dele, não ocorriam nos experimentos de Jurandir. Ninguém sabia quem era o frustrado, se ele com a química, ou se a química com ele. Não chegava ao ponto de odiá-la, mas sentia-se odiado por ela. Sem conseguir controlá-la, era ela quem assumia o controle sobre ele.
Desde a faculdade, Jurandir apanhava de sua vaidosa dama. Até seus beijinhos ardiam e queimavam como selinhos dados no bico de Bunsen - aquele foguinho picareta das reações químicas. Tirava boas notas nas avaliações teóricas. Mas era só entrar no laboratório, para iniciar a série de torturas da quadrilha de pipetas, balões de fundo chato e tubos de ensaio. Os líquidos escorriam de seus recipientes e, por um passe de mágica – e não de química – eram evaporados ou escoavam pelo ralinho da pia. Um dia, os corantes simplesmente se recusaram a sair dos frascos. Os potinhos ficaram tão escorregadios que até sabonete molhado seria mais fácil de capturar. Na tentativa de retirar o conteúdo com uma seringa, a agulha chegou a partir ao meio sem perfurar o lacre da embalagem. A multidão de alunos se dispersou em pânico - abaixando e protegendo as cabeças - com o festival de frascos que, voando, escapavam das mãos azaradas de Jurandir.
Depois de tanto ser vítima das peças pregadas pela voracidade de sua companheira inseparável – a química – na época de estudante, numa repetitiva ironia do destino, o desastrado Jurandir licenciou-se, doutorou-se, chegou à nobre função do magistério. Como professor não foi diferente. Com as palavras faladas, tinha verdadeira maestria, mas nos instantes de lecionar a parte prática – surpresa! – nada funcionava. Sua danação era antecipada pelos tropeços e modos desajeitados. Na banca de conclusão de curso de um dos seus graduandos, quase provocou uma tragédia. Entornou ácido sulfúrico na tese que seria defendida, ao argumentar que aquele material usado para compor a dissertação era vinagre puro, fermentação orgânica já azeda, neutra e moderadamente corrosiva. Quando apresentou ao orientador da tese, refutando os resultados obtidos, derrubou a ampola inteira sobre os papéis do aluno, abrindo um buraco que ultrapassou até a carteira de fórmica.
- Você já passou dos limites! - Cuspiu o reitor enfurecido.
- Dê-me mais uma chance, magnífico reitor! Não sei fazer mais nada. Só sei trabalhar com química!
- Você sabe química?! - Respondeu o reitor em tom de escárnio.
- Prometo não mais decepcioná-lo...
- Não mais?! Lembra-se quando secou todo o jardim do pátio da faculdade? Você me aporrinhava com aquela ideia maluca de fórmula do crescimento instantâneo. Qual foi o resultado disso? Desidratou as lindas plantinhas até serem reduzidas a arbustos retorcidos e excrementos. Nunca mais cresceu nada naquela terra.
- Sim, mas não se esqueça que eu inventei um jeito de impermeabilizar o teto da faculdade.
- Inventou, é?! Você realizou a façanha de transferir as raízes ressecadas das plantas do jardim, já mortas, para a laje da faculdade. As raízes cresceram e fizeram nada menos do que um rombo gigantesco, abrindo mais rachaduras. Com isso, as águas da chuva infiltraram ainda mais e inundaram por completo o laboratório. Na mistura da água com os aditivos químicos, formou-se uma gosma negra, parecendo um mangue, dentro da faculdade!
- Mas as raízes das plantas evitam a erosão!
- Você é doido? Isso é em morro?! A laje da faculdade não é um morro nem se localiza
- Mas...
- Sem “mas”! – Interrompeu o reitor, estendendo a Jurandir uma carta a ser assinada para rescindir o seu contrato.
Terminado o processo de demissão, a figura de Jurandir, sem expressão, saia cabisbaixa pelo fracasso de anos dedicado à profissão. Após a inércia inicial, pelo forte impacto que a situação impunha, começou a esbravejar – praguejando a insensibilidade do reitor -, e a colocar, em desespero, os cachorros verbais para fora na tentativa de espantar a desolação.
- Detesto a química! - Concluía um Jurandir desiludido.
Sem anunciar sua presença, um interlocutor invisível se meteu na história e se pôs a interpelá-lo.
- Um homem calejado, levando rasteira de seu próprio ganha pão... Que coisa feia! – Falou a voz misteriosa.
Assustado, Jurandir deu um salto, quando a ouviu, pois não havia uma viva alma por onde ele estava passando.
- Quem é você? Onde está?
- Que mica você paga, heim?! Entendeu? Química, você paga! - Soltou uma perversa gargalhada a estranha voz.
- Eu estou armado, heim?! Cuidado comigo! Pare de me observar! – Ameaçou Jurandir, esquecendo-se que um homem patético como seu semblante denunciava, jamais portaria uma arma.
- Não precisa ter medo, meu bom homem... Vim em seu auxílio!
- Como você pode me ajudar se nem ao menos se mostra? Eu não posso vê-lo.
- Me ver não mudará em nada.
- Mas como posso confiar? Com qual intenção ia querer me ajudar? Que interesse você tem em mim?
- Não acredita mais na bondade alheia? Quero apenas contribuir para o seu sucesso. Mas cabe a você escolher, responder por essa escolha.
- O que você quer em troca, como retribuição?
- Como pensa mal de mim, rapaz! Já disse, quero o seu sucesso apenas! E isso não é pouco.
- Sabe... Eu sou um fracassado e...
A voz misteriosa o interrompeu antes que começasse a narrar sua vida desastrada.
- Eu já sei... Ninguém lhe compreende, né? A química lhe dá tabefes e bofetadas o tempo inteiro... Você não consegue controlá-la, ela que lhe domina. Já sei de tudo isso!
- É...
- E então? Quer a minha ajuda?
- O que tenho que fazer?
- Quer ou não quer?
- Sim... Muito!
(...)
No laboratório de química da universidade que demitiu Jurandir, algo inusitado acontecia, causando frisson, perplexidade e agitação nos eméritos professores e nos mais qualificados pesquisadores. Esses cientistas renomados tentavam, sem sucesso, adicionar em seus compostos o elemento mais necessário da disciplina – a água, solvente universal -, porém, enfrentavam a inquietante rebeldia do H2O. Ninguém conseguia conceber aquela experiência esotérica, muito grotesca, que mais parecia mágica de antiga alquimia, do que com a metódica ciência moderna.
Com sacrifício, os sistemáticos pesquisadores insistiam em adicionar com um conta-gotas, o liquido precioso nas fórmulas inovadoras. Mas esse líquido, a água, prosseguia rebelde. Ao introduzirem o dispositivo para recolhê-la, pela direita, a água ia se esquivando para a esquerda. Tentando pela esquerda, a água, inexplicavelmente, rebolava com desenvoltura e escorregava para a direita, como se fosse gelatinosa. Quando conseguiam sugar uma pequena quantidade, a água automaticamente acabava cristalizando, congelava dentro do tubinho do conta-gotas. Os cientistas, irritados, já arrancavam seus frágeis fios de cabelo que restavam em suas cabeças pensantes.
Durante muito tempo, ninguém mais pôde realizar nenhuma experiência química naquela universidade. Sem a água, esse solvente universal, o laboratório teve que ser fechado por prazo indeterminado. A química já corria o risco de se tornar matéria extinta. Nas redondezas da universidade, até para beber, a água virou um artigo de luxo. Ficou muito difícil encontrar água potável com as características essenciais para o consumo. A água não era mais incolor, nem insípida, muito menos inodora. Tinha uma cor repugnante, um gosto horrível e exalava uma catinga tão arrepiante que superava até o cheiro do gambá e a carniça do urubu.
Alguns colegas mais próximos de Jurandir, notando seu súbito desaparecimento, pela falta de notícias – pois ele nunca mais fora visto após ser informado de sua demissão -, divulgaram em jornais comunitários e em revistas especializadas o sumiço desse professor, rejeitado pelos colegas de profissão e alunos, mas muito querido pelos amigos. Depois de um período de intrigas, esses amigos, que eram menos químicos do que assistentes de bruxaria, não dispensando um belíssimo caldeirão de experimentos macabros, associaram as perturbadoras ocorrências - a água adquirindo vida de forma abominável -, com o repentino desaparecimento de Jurandir.
Não demorou muito para descobrirem que o solvente universal, hoje fedido, horroroso e rebelde, não era ninguém menos que o próprio Jurandir transformado. Mas como isso foi possível? Feiticeiras existem? Perguntavam os amigos de Jurandir - mais aprendizes de bruxas do que de cientistas.
(...)
Logo que chegaram novas notícias sobre a internação do reitor da universidade, que havia consumido aquela água maldita, dando entrada no hospital com sintomas na pele, de coloração verde-musgo, textura de limo, e de olhos torcidos para a nuca - em vez de acima do nariz -, eles não tiveram dúvida. Jurandir não era exatamente a água – era seu veneno.
CONTO ESCRITO por ALEX AZEVEDO DIAS.