sábado, 26 de fevereiro de 2011

Jurandir, O Químico.













O químico Jurandir detestava a química. Não havia a menor empatia com seu objeto de estudo. Suas fórmulas nunca resultavam em compostos originais. As substâncias, mesmo miscíveis, jamais se misturavam. Nem ao menos explosões – coisa de cientista maluco de telenovelas – nada queriam saber dele, não ocorriam nos experimentos de Jurandir. Ninguém sabia quem era o frustrado, se ele com a química, ou se a química com ele. Não chegava ao ponto de odiá-la, mas sentia-se odiado por ela. Sem conseguir controlá-la, era ela quem assumia o controle sobre ele.

Desde a faculdade, Jurandir apanhava de sua vaidosa dama. Até seus beijinhos ardiam e queimavam como selinhos dados no bico de Bunsen - aquele foguinho picareta das reações químicas. Tirava boas notas nas avaliações teóricas. Mas era só entrar no laboratório, para iniciar a série de torturas da quadrilha de pipetas, balões de fundo chato e tubos de ensaio. Os líquidos escorriam de seus recipientes e, por um passe de mágica – e não de química – eram evaporados ou escoavam pelo ralinho da pia. Um dia, os corantes simplesmente se recusaram a sair dos frascos. Os potinhos ficaram tão escorregadios que até sabonete molhado seria mais fácil de capturar. Na tentativa de retirar o conteúdo com uma seringa, a agulha chegou a partir ao meio sem perfurar o lacre da embalagem. A multidão de alunos se dispersou em pânico - abaixando e protegendo as cabeças - com o festival de frascos que, voando, escapavam das mãos azaradas de Jurandir.

Depois de tanto ser vítima das peças pregadas pela voracidade de sua companheira inseparável – a química – na época de estudante, numa repetitiva ironia do destino, o desastrado Jurandir licenciou-se, doutorou-se, chegou à nobre função do magistério. Como professor não foi diferente. Com as palavras faladas, tinha verdadeira maestria, mas nos instantes de lecionar a parte prática – surpresa! – nada funcionava. Sua danação era antecipada pelos tropeços e modos desajeitados. Na banca de conclusão de curso de um dos seus graduandos, quase provocou uma tragédia. Entornou ácido sulfúrico na tese que seria defendida, ao argumentar que aquele material usado para compor a dissertação era vinagre puro, fermentação orgânica já azeda, neutra e moderadamente corrosiva. Quando apresentou ao orientador da tese, refutando os resultados obtidos, derrubou a ampola inteira sobre os papéis do aluno, abrindo um buraco que ultrapassou até a carteira de fórmica.

- Você já passou dos limites! - Cuspiu o reitor enfurecido.

- Dê-me mais uma chance, magnífico reitor! Não sei fazer mais nada. Só sei trabalhar com química!

- Você sabe química?! - Respondeu o reitor em tom de escárnio.

- Prometo não mais decepcioná-lo...

- Não mais?! Lembra-se quando secou todo o jardim do pátio da faculdade? Você me aporrinhava com aquela ideia maluca de fórmula do crescimento instantâneo. Qual foi o resultado disso? Desidratou as lindas plantinhas até serem reduzidas a arbustos retorcidos e excrementos. Nunca mais cresceu nada naquela terra.

- Sim, mas não se esqueça que eu inventei um jeito de impermeabilizar o teto da faculdade.

- Inventou, é?! Você realizou a façanha de transferir as raízes ressecadas das plantas do jardim, já mortas, para a laje da faculdade. As raízes cresceram e fizeram nada menos do que um rombo gigantesco, abrindo mais rachaduras. Com isso, as águas da chuva infiltraram ainda mais e inundaram por completo o laboratório. Na mistura da água com os aditivos químicos, formou-se uma gosma negra, parecendo um mangue, dentro da faculdade!

- Mas as raízes das plantas evitam a erosão!

- Você é doido? Isso é em morro?! A laje da faculdade não é um morro nem se localiza em um. Você está despedido!!

- Mas...

- Sem “mas”! – Interrompeu o reitor, estendendo a Jurandir uma carta a ser assinada para rescindir o seu contrato.

Terminado o processo de demissão, a figura de Jurandir, sem expressão, saia cabisbaixa pelo fracasso de anos dedicado à profissão. Após a inércia inicial, pelo forte impacto que a situação impunha, começou a esbravejar – praguejando a insensibilidade do reitor -, e a colocar, em desespero, os cachorros verbais para fora na tentativa de espantar a desolação.

- Detesto a química! - Concluía um Jurandir desiludido.

Sem anunciar sua presença, um interlocutor invisível se meteu na história e se pôs a interpelá-lo.

- Um homem calejado, levando rasteira de seu próprio ganha pão... Que coisa feia! – Falou a voz misteriosa.

Assustado, Jurandir deu um salto, quando a ouviu, pois não havia uma viva alma por onde ele estava passando.

- Quem é você? Onde está?

- Que mica você paga, heim?! Entendeu? Química, você paga! - Soltou uma perversa gargalhada a estranha voz.

- Eu estou armado, heim?! Cuidado comigo! Pare de me observar! – Ameaçou Jurandir, esquecendo-se que um homem patético como seu semblante denunciava, jamais portaria uma arma.

- Não precisa ter medo, meu bom homem... Vim em seu auxílio!

- Como você pode me ajudar se nem ao menos se mostra? Eu não posso vê-lo.

- Me ver não mudará em nada.

- Mas como posso confiar? Com qual intenção ia querer me ajudar? Que interesse você tem em mim?

- Não acredita mais na bondade alheia? Quero apenas contribuir para o seu sucesso. Mas cabe a você escolher, responder por essa escolha.

- O que você quer em troca, como retribuição?

- Como pensa mal de mim, rapaz! Já disse, quero o seu sucesso apenas! E isso não é pouco.

- Sabe... Eu sou um fracassado e...

A voz misteriosa o interrompeu antes que começasse a narrar sua vida desastrada.

- Eu já sei... Ninguém lhe compreende, né? A química lhe dá tabefes e bofetadas o tempo inteiro... Você não consegue controlá-la, ela que lhe domina. Já sei de tudo isso!

- É...

- E então? Quer a minha ajuda?

- O que tenho que fazer?

- Quer ou não quer?

- Sim... Muito!

(...)

No laboratório de química da universidade que demitiu Jurandir, algo inusitado acontecia, causando frisson, perplexidade e agitação nos eméritos professores e nos mais qualificados pesquisadores. Esses cientistas renomados tentavam, sem sucesso, adicionar em seus compostos o elemento mais necessário da disciplina – a água, solvente universal -, porém, enfrentavam a inquietante rebeldia do H2O. Ninguém conseguia conceber aquela experiência esotérica, muito grotesca, que mais parecia mágica de antiga alquimia, do que com a metódica ciência moderna.

Com sacrifício, os sistemáticos pesquisadores insistiam em adicionar com um conta-gotas, o liquido precioso nas fórmulas inovadoras. Mas esse líquido, a água, prosseguia rebelde. Ao introduzirem o dispositivo para recolhê-la, pela direita, a água ia se esquivando para a esquerda. Tentando pela esquerda, a água, inexplicavelmente, rebolava com desenvoltura e escorregava para a direita, como se fosse gelatinosa. Quando conseguiam sugar uma pequena quantidade, a água automaticamente acabava cristalizando, congelava dentro do tubinho do conta-gotas. Os cientistas, irritados, já arrancavam seus frágeis fios de cabelo que restavam em suas cabeças pensantes.

Durante muito tempo, ninguém mais pôde realizar nenhuma experiência química naquela universidade. Sem a água, esse solvente universal, o laboratório teve que ser fechado por prazo indeterminado. A química já corria o risco de se tornar matéria extinta. Nas redondezas da universidade, até para beber, a água virou um artigo de luxo. Ficou muito difícil encontrar água potável com as características essenciais para o consumo. A água não era mais incolor, nem insípida, muito menos inodora. Tinha uma cor repugnante, um gosto horrível e exalava uma catinga tão arrepiante que superava até o cheiro do gambá e a carniça do urubu.

Alguns colegas mais próximos de Jurandir, notando seu súbito desaparecimento, pela falta de notícias – pois ele nunca mais fora visto após ser informado de sua demissão -, divulgaram em jornais comunitários e em revistas especializadas o sumiço desse professor, rejeitado pelos colegas de profissão e alunos, mas muito querido pelos amigos. Depois de um período de intrigas, esses amigos, que eram menos químicos do que assistentes de bruxaria, não dispensando um belíssimo caldeirão de experimentos macabros, associaram as perturbadoras ocorrências - a água adquirindo vida de forma abominável -, com o repentino desaparecimento de Jurandir.

Não demorou muito para descobrirem que o solvente universal, hoje fedido, horroroso e rebelde, não era ninguém menos que o próprio Jurandir transformado. Mas como isso foi possível? Feiticeiras existem? Perguntavam os amigos de Jurandir - mais aprendizes de bruxas do que de cientistas.

(...)

Logo que chegaram novas notícias sobre a internação do reitor da universidade, que havia consumido aquela água maldita, dando entrada no hospital com sintomas na pele, de coloração verde-musgo, textura de limo, e de olhos torcidos para a nuca - em vez de acima do nariz -, eles não tiveram dúvida. Jurandir não era exatamente a água – era seu veneno.


CONTO ESCRITO por ALEX AZEVEDO DIAS.

segunda-feira, 21 de fevereiro de 2011

Túlio e o Terreiro.













O som dos atabaques ecoava com as firmes pisadas no terreiro. Aquela reza forte deixava qualquer corpo livre do mal. Amuletos benzidos, com muito axé, facilitavam o propagar das emanações e impediam os malefícios do dia a dia. As vibrações dos Orixás continuavam atravessando a natureza em cânticos exuberantes.

Túlio frequentava aquele terreiro desde menino. Sabia que tinha um mestre no astral, mas algo o bloqueava na conclusão de seus objetivos, sua iniciação – empreitada tão sonhada. Nasceu, foi criado, constituiu família e procriou nas proximidades do terreiro, mas inexplicavelmente, uma força o impelia contra essa vocação de batismo.

Cogitou seguir uma verve artística, não se submeter plenamente à religião. Mas Túlio apavorava-se ao se flagrar renegando suas raízes. Não pretendia ser um ingrato, filho desnaturado. Estava ligado pelo cordão umbilical com aquele chão iluminado. Sua mãe, ao sentir as primeiras contrações do parto, embora estivesse advertida pelo nascimento prematuro da criança - filho homem, disse a entidade -, foi pega desprevenida durante importante cerimônia no terreiro. A bolsa rompeu. Teve o filho ali mesmo. Aquele solo fértil, protegido pelos deuses, recebera o puro sangue da placenta materna, sendo testemunha da vinda de mais um membro da casta.

Filho único de um casal que migrou da Bahia para o Rio, chegou ao mundo prematuro, no subúrbio carioca, parto natural, primitivo, caído no chão, no coração de um templo fundado por seus ancestrais baianos, muito anteriores à geração de seus pais. Desde cedo, exibia uma inequívoca habilidade para a percussão. Batucava como ninguém jamais tamborilara no instrumento de couro animal, objeto sagrado das convocações religiosas.

Sua mãe ganhava a vida com um tabuleiro de acarajé montado nas imediações de sua casa. Com as vendas dessa iguaria baiana, complementava o sustento familiar. Já o pai de Túlio, era professor num curso de letras, lecionando no ensino superior sobre as manifestações culturais afro-brasileiras. Além de suas atividades comerciais, seus pais se dedicavam com prioridade ao culto da doutrina dos Orixás, pois tinham uma autêntica relação fraternal com essa religião, considerando-a o berço, a origem, fundamento de suas existências.

Mas aquela misteriosa energia repulsiva contrastava no cenário das rezas fortes. Apesar de ativo nas cerimônias, exímio percussionista, descendente de gente influente, médiuns respeitados, possuía uma vibração quase estéril, não sendo capaz de nenhuma comunicação com as entidades, mesmo desenvolvendo seus supostos dons com perseverança.

- Talvez eu não tenha dom nenhum, ao contrário do que minha linhagem atesta. Será que eu sirvo para alguma coisa? – Indagava-se com melancólico desapontamento.

Essas questões atormentavam-no ao ponto de entrar em conflito com seus pais. E para colaborar com as desavenças, Túlio havia se casado com uma mulher que não pertencia àquela cultura. As crenças de sua esposa divergiam das tradições cultuadas pelos sogros. Embora houvesse respeito e tolerância mútua, os choques culturais eram inevitáveis - afinal, a relação que os pais de Túlio tinham com suas crenças era tão encarnada, que a mera hipótese de afastamento representaria a morte.

Com a evolução da vida de casado – na chegada dos filhos – a tolerância entre os pais de Túlio e sua esposa cedeu lugar à radical insatisfação. Os atritos aceleraram o rompimento dos laços amistosos que uniam ambas as famílias. Sua mulher reclamava constantemente da personalidade intratável dos sogros. Ela, como mãe, tinha o direito de decidir o destino dos filhos antes que amadurecessem e pudessem assumir as próprias escolhas. Não admitia a intervenção dos sogros na criação de seus rebentos. Já os avós paternos das crianças, devido à infatigável reverência aos espectros astrais, não aprovavam aquela educação imposta pela mãe – longe das oferendas e patuás.

Eles argumentavam, na visão dos Orixás, que não haveria a necessidade de idolatrar o pecado e, sem ele, o crescimento das crianças, livre das amarras, sem culpa, teria um melhor ambiente para expressar seus potenciais. Mas irredutível, a esposa de Túlio alimentava ainda mais a negação dos ensinamentos dos sogros. Ela reivindicava, durante as longas discussões religiosas, que sem o pecado não haveria salvação. Partidária do pensamento cristão – ou o que ela achava que fosse -, repetia entusiasmada que o pecado possibilitaria, depois de muita luta, alcançar o mérito da libertação.

A discórdia familiar chegava a pontos insustentáveis, com a esposa apertando Túlio contra a parede para que ele tomasse uma decisão - entre ela e seus pais - apesar de que, independente do posicionamento do marido, ela não estaria disposta a abrir mão sobre a forma que julgava mais adequada para educar seus filhos. Não sabendo optar nesse plebiscito, Túlio tomou uma terceira opção: A fuga. Numa noite tranquila, esperou que a esposa e os filhos dormissem, já com as malas preparadas, e, sem se despedir, não visitando nem os seus pais para um último adeus, seguiu o caminho da estrada.

Ninguém mais ouviu falar de Túlio. Não se sabia sobre o seu paradeiro. Se estava vivo, se havia morrido. Nada. Nenhuma notícia. Com o passar do tempo e dos acontecimentos, a esposa, antes intransigente, amoleceu seu caráter. Cedeu às sugestões dos sogros e declarou que o casamento com Túlio, apesar de um histórico familiar contrário às batucadas, significava que sentia uma irresistível atração à cultura do tambor. Logo, ela se tornaria uma importante mãe de santo local. Ficou tão íntima dos sogros, que abriu uma sociedade com a mãe de Túlio, sendo sua fiel parceira no mercado de acarajé. Os filhos – nem se fala - foram educados no terreiro.

Túlio, desaparecido, cumpriu o seu destino despatriado. Mesmo tocando muito bem os instrumentos sagrados, não pôde se iniciar no sacerdócio. Trabalhava com afinco, mas algo dizia que aquele não era o seu lugar. Sumiu! Perdeu-se no mundo. Uns afirmavam de pés juntos que ele fora fulminado por um raio, como vingança pelo seu desprezo. Outros acreditavam que fez uma carreira de sucesso tocando o surdo um numa grande escola de samba. Mas a verdade é que ninguém tinha a menor noção sobre o que aconteceu com Túlio após a espetacular fuga, sem deixar vestígios.

Porém, no terreiro de seus pais, uma pequena plantinha foi vagarosamente germinando. Algumas pessoas, ao verem a planta crescer, quiseram arrancá-la, pois ou seria pisoteada, ou atrapalharia a evolução durante os rituais. Outros, no entanto, entendiam que para nascer uma frágil planta naquelas condições – pois a terra era muito socada nas danças – só sendo obra de seres de luz. Talvez as entidades quisessem testar a capacidade de seus filhos para cuidar e amar. Ou ainda, aquela plantinha fosse o suporte de alguma comunicação de paz ainda em segredo, na espera de ser decifrada.

A planta foi desabrochando, aumentando de tamanho, o tronco engrossando... Ficou enorme. Era uma tamarineira com frutos em favos, de polpa suculenta, com textura de goma e agridoce. Sua copa frondosa, fazia uma ampla sombra de grande utilidade, pois protegia e refrescava nos dias mais quentes. Virou uma cobertura natural. Suas folhas eram tão sensíveis que ao menor toque se fechavam. Os mais entendidos foram logo afirmando, com grande propriedade, que a tamarineira é originária das savanas africanas. Essa informação foi recebida com muito orgulho pelos parceiros de devoção.

Quando, estranhamente, recordaram-se de Túlio que já estava esquecido e dado como morto - pois havia passado muitos anos desde seu sumiço -, de imediato souberam que a tamarineira só podia ser o próprio. Ao invés de enterrado, fincou raízes debaixo da terra, no terreiro dos seus pais, crescendo como árvore viçosa. A partir daquele momento, tiveram absoluta certeza que ele havia se reencontrado consigo. Voltado para ficar. Havia descoberto a sua verdadeira vocação e utilidade. Estava com as raízes fixadas e espalhadas naquele lugar – o seu lugar.


CONTO ESCRITO por ALEX AZEVEDO DIAS.

sábado, 19 de fevereiro de 2011

Eu Te Amo.
















Oswald relutava em voltar para seu ambiente doméstico. Já ficara muito tarde. Estava fazendo de tudo para esticar o tempo entre a saída do trabalho e a chegada em casa. Aquele nunca fora um ato sofrido, como passou a ser. Quando se sentia muito exigido ao realizar uma tarefa amarga em seu emprego, imediatamente se transportava, em pensamento, para sua relaxante casa na praia. Esse endereço fora recentemente adquirido, com muito esforço, adotando-o para fixar residência. O pouco tempo em que passava em casa, adorava se recostar na confortável poltrona reclinável e saborear seu aperitivo predileto.

Mas durante aquela noite, tentou ao máximo espichar seus limites temporais. Evitava a irremediável volta à sua casa – antes projeto tão sonhado, agora seu maior pesadelo.

- Tudo que eu sempre desejei está diante de mim. Vivo no que outrora fora um sonho lindo e humanamente impossível. Poucos tem condições de ter uma casa igual a minha. Invejável. Não sei qual o motivo de tanta resistência em voltar àquele lugar, ao meu lugar... – Lamentou um Oswald, com a mais radical angústia, por ter obtido tanto êxito da vida sem saber aproveitar.

Faltavam quinze minutos para as dez horas da noite. Oswald sentado, corpo inclinado, cotovelos sobre as pernas, apoiando o queixo áspero pela barba por fazer com as falanges tensionadas dos polegares - as mãos unidas, espalmadas, cuneiformes. A praça pública à qual pertencia o banco em que Oswald se perdia na imponderável meditação, cumpriria o fechamento dos portões às dez em ponto, seguindo a restrição de horário decretada pelo secretário de segurança da cidade.

- Desculpe-me, senhor. Sinto lhe informar que o parque será fechado daqui a pouco. Devo convidá-lo a se retirar. – Abordou o guarda noturno com voz temperada.

Oswald manteve-se debruçado sobre as pernas, impassível, ouvindo atentamente as instruções do guarda. Com o tronco ainda lânguido, respiração pesada, quase arfante, ergueu o atarracado pescoço. Deslocou o olhar por cima das rústicas lentes de resina – óculos de armação antiquada -, demonstrando fastio, num semblante monocórdio, e resmungou:

- Estou saindo...

O guarda meneou a cabeça afirmativamente, esboçando um leve sorriso no canto da boca, satisfeito pelo distinto cidadão ter obedecido as suas ordens. Cumprimentou-o com a formalidade que sua patente lhe reservava:

- Desejo uma noite agradável, senhor!

- Igualmente. – Respondeu Oswald impaciente e irritadiço.

Com passos desritmados, arrastados, Oswald saiu pelo acesso lateral do parque. Encostou-se à grade de ferro, no limite exterior que isola a área pública – tornando-a privada nas horas avançadas -, e enfiou as mãos nos bolsos das surradas calças sociais. Apalpou algo. Sentindo esse pequeno volume num dos bolsos, estranho objeto, parecendo um papelote amassado, pegou-o para melhor verificar a sua procedência. Ao desenrolar o papel, para sua surpresa, relembrou a quem pertencia tal característica caligrafia. Sua memória não falhara. Sabia quem era o dono daquela assinatura, mas seu nome lhe escapara, não conseguia associar o nome à pessoa.

Admirado, quase soltando um grito de espanto – reprimido por uma das mãos que levou à boca -, comprovou que a data da inevitável ocorrência pretérita, coincidia com precisão, com a data escrita no cabeçalho do bilhete. Refez-se do susto, não sem uma ponta de prazer por ter identificado o conteúdo da carta - embora algo ainda não se encaixasse bem – e conduziu o bilhete, agora adequadamente dobrado, à parte mais profunda do mesmo bolso da calça em que o encontrou anteriormente.

Oswald retomou o caminho de casa, apressadamente. Morava num bairro residencial, com aspecto de lugarejo bucólico, situado na região litorânea, um pouco distante do movimentado centro de uma grande cidade. Ao chegar à rua de sua casa, ouviu o som repetitivo de uma melodia muito conhecida, apesar de não alcançar as reminiscências de seus arquivos pessoais sobre a origem de tal canção.

Aquela música o afetara. Trouxe à tona recordações que o fizeram estremecer intimamente. Muito se esforçou, puxando dos recônditos da memória, algum mínimo objetivo fiapo de lembranças. Já estava transbordando em emoções que lhe corroíam a alma. Logo se entregou a copiosas e insistentes lágrimas. Ficou um tempo imóvel para recuperar o equilíbrio mental – mesmo com a melodia ainda em plena execução – e reiniciou o trajeto à entrada de sua casa.

Ao abrir o portão que dava para a varanda, hesitou em adentrar o umbral da sala de jantar. Oswald retornou, desviando-se do roteiro primitivo - seu ordinário endereço doméstico - e bateu em disparada em direção ao lado oposto da praia, um elegante clube da marinha do qual era sócio, pois havia se aposentado pelas forças armadas, ocupando cargos subalternos. Estivera presente em solenidades, a convite de amigos que possuíam mais nobres hierarquias no navio em que serviu, quando em missões oficiais.

Aquela paisagem era memorável. As montanhas e relevos rochosos contornando o clube estavam registrados nos painéis sentimentais da infância de Oswald. Defronte ao patamar do clube, não resistiu por muito tempo, e foi logo apresentando sua carteirinha de sócio. Um representante da administração do lugar acabou por solicitar-lhe um recadastramento na sociedade, devido ao considerável período em que ficou afastado. Oswald pediu permissão para atualizar seu título mais tarde, alegando estafa pela longa caminhada – que foi aceito pela diretoria -, deixou seus pertences numa mesinha posicionada na pérgula da piscina, e mergulhou no espelho d’água com a certeza imbatível de raras crianças.

Só aí, boiando de costas na água clorada, tremulando pelo efeito da teimosia obstinada de ondinhas artificiais, assimilou precariamente a passagem das horas. Já estava na manhã de outro dia. Os acontecimentos mais marcantes ficaram para trás, na noite anterior. Atravessou a madrugada em atribuladas circunstâncias, em duradouras atividades, meditações, e não pôde - ou não quis – ver o tempo passar. A manhã chegou. O sol raiou.

Consultou o relógio. Já eram sete da manhã. Desde as dez horas da noite passada, quando sentado no parque, fora expulso, até a hora atual, longas histórias foram revolvidas. Os reencontros, as descobertas e revelações dramáticas incorporaram o vazio da carne, incinerando as entranhas de um Oswald deslumbrado. O que deveria se manter enterrado, não mais suportava a asfixia esfacelada da culpa. Perdeu-se na modesta transitoriedade. Embaraçou-se em companhia da sucessão do tempo.

Após o revigorante banho de piscina, despertando a meninice, pensamentos infantis, reestruturou-se – ou pelo menos o suficiente, após os impactos existenciais – e decidiu, pela segunda vez, regressar ao lar, na esperança de não recuar. Ao se aproximar de casa, sua sensibilidade auditiva, já afetada, novamente captou a canção misteriosa.

Teve sensações que o remetiam a algum elo perdido de outrora, mas continuou impossibilitado de se situar espacial e temporalmente.

Aquela melodia provocava miríades de recordações. Estranhamente a música se repetia indo e voltando, sempre mantendo o mesmo trecho, como se tentasse comunicar algum código secreto inaudível. Vencendo o limite do pátio em que seu carro estava estacionado, terreno fronteiriço ao quintal de sua casa – pois uma força irreprimível o impedia de entrar pela frente, pela sala de jantar -, entrou pela área de serviço. Começou a ouvir a música num volume mais alto e com maior nitidez.

Ainda trêmulo pelo medo de uma surpreendente volta de terríveis fantasmas familiares que já deveriam estar sepultados, conseguiu localizar de onde a melodia vinha. Ficou perplexo por descobrir ser a sua sala de jantar, a origem da música.

- De onde essa música vem? Não é possível que seja de minha sala de jantar! Eu moro sozinho. Há tempos não ponho para tocar nenhum tipo de disco. E quando eu saí, certamente não deixei nenhum aparelho ligado, muito menos um toca discos. Será que tem mais alguém em minha casa? Mas quem?

Vitimado pela dúvida sufocante, no exato instante em que pisou no carpete da sala, deparou-se com a antiga vitrola repetindo o mesmo trecho arranhado de um disco de vinil. Acima da vitrola, o pêndulo do velho relógio comprado de segunda mão, num formoso antiquário – cuja história não coincidia com a vivência de Oswald – batia em sintonia com a engrenagem cardíaca de um homem também arranhado, condenado a repetir o exílio de si.

Doze badaladas. Meio dia. Por alguns minutos, esqueceu-se do bilhete dobrado em seu bolso. Embora reconhecesse a assinatura, ainda não sabia como havia parado ali, nem assimilava a correspondência da letra com a pessoa do autor. Havia uma grotesca rachadura na coerência de seu raciocínio. Tantas repetições...

- A vida é um ciclo, uma roda a girar. – Refletiu em voz alta.

Oswald sentia que estava percorrendo uma circunferência com um fosso abissal ao longo do percurso. Um impávido buraco que lhe sorria com agressiva malícia, bloqueando o infinito. Assemelhava-se à roldana que desliza avariada, sempre a tropeçar.

- Essa música... Aquela assinatura...

- Só pode ser! – Afirmou Oswald com indubitável convicção, decretando a morte da descrença.

Mas a súbita certeza que lhe invadira a fugidia essência do ser, sem que para isso fosse convidada, não tardou em carregar junto de si, uma considerável devastação.

- É isso, eu me lembro... Não sou um solteirão de meia idade. Eu já fui casado. Agora arrasto o pesado fardo da viuvez.

Numa das tensas e inúmeras discussões do casal, sempre adicionadas de intenso teor de hostilidade física e verbal, Oswald, que apreciava cantatas eruditas – som ambiente indispensável na hora do jantar – empurrou furiosamente sua esposa de encontro à antiga vitrola. Como a agulha estava em contato com a superfície do disco em movimento, o braço deslocou pelo corpo ondulado do vinil, rasgando-o em linha reta – corte abrupto, finito.

A vitrola passou a reproduzir a faixa compreendida pela linha do arranhão, sem interrupção, eternamente. Oswald recebeu um choque ao rememorar instantaneamente que a data do bilhete era a mesma data na qual se comemoraria mais um aniversário de sua esposa. A música que tocava era um álbum que continha uma apresentação da esposa de Oswald – uma virtuosa professora de piano clássico – gravada no conservatório no qual ministrava aulas.

Naquele mesmo dia especial, festivo pela passagem de mais uma primavera de sua mulher, Oswald, tomado pela sandice momentânea diante da exigência de divórcio feito pela esposa, justamente no seu aniversário, empurrou-a com extrema violência contra a vitrola – que executaria o último concerto da pianista – fechando as cortinas das interpretações musicais. Por causa do fulminante impacto, a robusta armação de mármore na qual o pesado relógio de madeira estava suspenso, para sustentá-lo, despencou, atingindo em cheio a moleira da esposa de Oswald.

A pancada causou fratura, irreversível traumatismo craniano, levando-a ao óbito prematuro, no exato momento em que o relógio bateu em sua cabeça. Transtornado pelo acidente, crime culposo, Oswald não teve condições de lhe entregar o presente que com tanto carinho escolhera. Estava condenado a vagar na amnésia dos dias felizes. O bilhete, agora reduzido a trapo, amassado no fundo do bolso, única memória viva, trazia uma simples, porém significativa mensagem:

“(23/04/1985) À minha esposa querida...

Feliz Aniversário!

De seu marido que muito lhe quer bem.

Eu te amo!

Assinado: Oswald.”


CONTO ESCRITO por ALEX AZEVEDO DIAS.

terça-feira, 8 de fevereiro de 2011

Plácido, A Rainha.














Plácido era apicultor. Cultivava o apiário para extrair o mel, o própolis, a cera e a geléia real, comercializando-os no mercado especializado. Além disso, também era o responsável por polinizar outras culturas agrícolas, utilizando o pólen encontrado nas abelhas, sua matéria prima, para fecundar os pomares durante a floração. O apiário, para Plácido, era um símbolo máximo da origem histórica de sua família, pois foi transmitido através de gerações - de seu bisavô para o seu avô e de seu avô para o seu pai, recebendo a herança diretamente do seu pai, antes de morrer. Ele muito se orgulhava de ser o novo herdeiro das colméias, cuidando de suas abelhas africanas com um inequívoco carinho maternal.

O afeto que Plácido doava às suas abelhinhas, dividia as opiniões de vizinhos e de outros fazendeiros das redondezas. Alguns consideravam que Plácido se dedicava exageradamente à apicultura, principalmente porque sua relação com ela não se limitava ao trabalho, adentrando em sua vida íntima. Já outros, achavam que o apego àqueles bichinhos, era um sinal que o amor universal não distinguia entre raça, classe social, espécies, nem reinos - sejam eles animal, vegetal, e mineral.

Plácido exibia com satisfação uma relação harmoniosa – ou quase – com as suas dóceis, porém selvagens abelhas. Sabia o nome de todas, distinguindo-as, reconhecendo cada “filha” sua entre as milhares que rondavam suas colméias. Convivia com aquele zum zum zum dia e noite, noite e dia. Sonhava em poder domesticá-las ainda mais, até chegar ao ponto ideal de compartilhar com elas seu almoço, café da manhã, janta, e, como prioridade, compartilhar os seus lençóis na hora de dormir.

Mesmo com tantos afagos e trocas de carícias com seus insetos especiais, um acontecimento inusitado alterou o rumo de sua história como apicultor. Numa manhã bem cedo, Plácido sentou-se em sua cadeira cativa, também transmitida de gerações a gerações, herdada de seus antepassados, e já havia começado a ler seu jornal - seu hábito diário. De forma completamente inesperada, o que provocou um tapa certeiro do próprio Plácido em sua orelha direita, uma abelha, conhecida por seu “pai” como Zunininha, que havia se desgarrado do enxame, encontrou naquele orifício auricular, uma convidativa caverna para se abrigar – além de uma suculenta fonte de cera.

Aquele contato entre ouvido e abelha não teve a recepção esperada entre pai e filha. No mesmo instante em que a abelha entrou, Plácido quase desmaiou. Foi uma dor terrível, sem precedentes. Além das ferroadas, que não eram nada sutis, o tamanho avantajado do inseto e seu barulho infernal, causaram perturbação tão intensa em Plácido, que por alguns minutos não sabia mais quem era. Ficou apenas entregue às tentativas alucinadas para retirar o animal de seu ouvido.

Mesmo sem ter saído, a abelha estranhamente se acalmou lá dentro. Parecia que nem tinha entrado no ouvido de Plácido. Como consequência, o dono da orelha foi também se acalmando, até recuperar os sentidos, sentar-se novamente na cadeira e voltar a ler as notícias do seu jornal. Porém, algo de ainda mais inesperado já ensaiava para uma entrada triunfal em cena.

Um formigamento em suas papilas gustativas o retirou da leitura, repetindo pela segunda vez, a dramática interrupção da harmoniosa manhã de Plácido. Uma irresistível vontade de colher flores coloridas, foi sentida por ele. Levantou-se e, com a convicção metafísica que só filósofos socráticos possuem, duvidando da matéria, Plácido ainda em seu jardim, foi em direção à múltipla variedade de florescências. Ele colheu petúnias, margaridas, antúrios, e também flores de espirradeiras e de ervas daninhas, todas causando igual maravilha aos sentidos de Plácido.

Quando Plácido se deu conta do que estava fazendo, já mastigava as pétalas como antigamente mascava-se rapé – mas sem a cusparada no final. O sabor do néctar das flores era inigualável. Seu paladar nunca esteve tão aprimorado. Tentou colocar à prova sua depurada capacidade para sentir gostos, comendo um queijo gorgonzola que estava armazenado na dispensa já há alguns meses, mas seu paladar estava neutro, não sentia o gosto do gorgonzola, nem mesmo o característico cheiro do queijo – embora estivesse insuportavelmente fedido, como a etiqueta exige para o consumo de um bom derivado lácteo.

Testando diversos outros alimentos, selecionando os que apresentavam aromas e paladares mais fortes e marcantes, constatou definitivamente, que seu paladar e olfato estavam comprometidos, mortos e enterrados. Mas um fenômeno sobre o qual não conseguia explicar, era que apesar de não mais sentir os gostos e os cheiros das comidas que mais apreciava, adquiriu uma extraordinária sensibilidade às flores. Quando se tratava de flores, um crescente apetite se instalava, seu olfato as percebia a quilômetros de distância, seu paladar o deixava nas nuvens ao mastigar as pétalas, cada variedade de flor tendo um sabor especial, um autêntico manjar dos deuses.

Gradativamente, Plácido começou a enxergar o mundo como se tivesse cinco olhos. Via com os seus dois olhos normais, que se deslocaram da frente do crânio para as laterais, além de outros três pequenos na parte frontal da cabeça, agrupados como num triângulo, cegos para movimentos e imagens, apenas detectando a luminosidade. No topo de sua cabeça, duas estruturas semelhantes a antenas começaram a desempenhar uma magnífica sensibilidade para farejar, mesmo na escuridão, quando sua visão perdia a função.

A percepção geométrica de Plácido ganhou contornos impecáveis, com muita precisão. Um detalhe grotesco, é que cada olho via de uma maneira fragmentada, partindo as imagens em centenas de minúsculas formas hexagonais, simultaneamente. Mas em meio a tanta acuidade visual, uma cor não era mais visualizada – a cor vermelha, cor do sangue. Para compor o figurino, um par de asas fininhas e uma bunda rechonchuda com um ferrão na ponta, além de uma cor amarelada com listras negras, surgiram na incontestável força da natureza.

(...)

Na colméia, enquanto as fêmeas operárias trabalhavam com obstinação, garantindo uma regulagem exata na linha de produção, ao colherem o delicioso néctar para estocar nos favos, Plácido, a rainha, repousava tranquilamente em seu trono imperial, aproveitando o reinado. Um macho, zangão, como quem não quer nada, sobrevoava a colméia da rainha Plácido. De repente, Plácido voo em disparada, esperando que o zangão a alcançasse para tomá-la em núpcias.

Após a noite de núpcias, em que ambos se entregaram à cópula enlouquecida, a fecundação foi realizada. A partir daí, o zangão foi expulso. Mas diante de sua resistência para sair, a rainha Plácido chamou suas fiéis operárias para expulsá-lo à força.

Como o verão estava chegando ao fim, e o mel escasseando, a rainha Plácido preferiu não expulsar o seu macho, pois outro destino, não menos trágico, esperava por ele. Assim, aquele dedicado macho, obediente aos seus instintos de zangão, futuro pai das novas abelhinhas, transmissor da preciosa herança para a continuidade das gerações na colméia, foi preso e torturado. Abandonado, o futuro pai permaneceu lá, trancado, mas por pouco tempo, vindo a morrer à míngua, de fome e de frio.


CONTO ESCRITO por ALEX AZEVEDO DIAS.

sexta-feira, 4 de fevereiro de 2011

Cafés com Leite.















- Estou cansado de ser café com leite! Assim eu não brincarei mais...

- Ué?! Você começou a brincar, por acaso?

- Claro que estou brincando!

- Ah é?! Você é bebê ainda. Faz xixi nas calças. Só atrapalha...

- Não atrapalho nada, tá?!

- Paulinho, quando você aceitar perder, brincar na moral, aí deixará de ser café com leite.

- Mas o que é café com leite, afinal? Minha mãe sempre me dá café com leite de manhã. Mas eu detesto café, mesmo com açúcar. De leite eu até gosto, mas não sou criança mais para ficar tomando leite, né?

- Ah, Paulinho! Dá licença, vai! Sai pra lá! Dixe de ser pedra no meu sapato, pô!

- Oh, Jão! Você é bestão, é?! Mamãe mandou você cuidar de mim, porque sou menor do que você. Se me impedir de brincar aqui, contarei tudo a ela!

- Que bichinho chato! Cacete! Tá legal... Continue brincando com a gente. Mas como você não entende as regras do jogo, nem aceita perder, ficará como café com leite mesmo.

Jão e Paulinho eram irmãos. Também tinham uma irmã mais velha que morava com o marido, em outra casa. Jão tinha 11 anos, e Paulinho, apenas 5. Os pais dos meninos estavam separados há 3 anos. Nessa época, a filha mais velha, incomodada com a situação familiar caótica, aproveitou a ocasião de estar namorando com um rapaz declaradamente apaixonado, e que tinha também algumas economias, e resolveu se mudar com ele, unindo-se maritalmente.

O pai, nesse tempo, já estava de compromisso sério com outra mulher – que também tinha filhos de outro casamento. Ele os adotou com exclusividade de direito, como se fossem seus únicos filhos – o que o fez esquecer dos seus filhos legítimos, frutos de um duradouro e feliz relacionamento, mas que terminou em divórcio.

A mãe, para sustentar a casa e os dois filhos, apesar de receber uma razoável pensão do ex-marido – coisa que fazia, condenado a cumprir por lei, considerando o suficiente para eximi-lo das obrigações paternas -, precisava exercer uma árdua jornada de trabalho. Com isso, ficava impedida de atender integralmente os filhos em suas necessidades afetivas.

Jão e Paulinho passavam a maior parte do dia com uma improvisada babá, amiga da mãe dos meninos. Ela a conhecera quando foi contratada por uma policlínica comunitária, no setor de serviços gerais. Essa mulher, solidarizando-se com a aflição da amiga, mãe dos meninos, por ser impossível se desdobrar entre os afazeres domésticos e trabalhar fora, ofereceu sua disposição em ajudá-la.

Além da visível generosidade, havia também um motivo mais íntimo, implícito na oferta. Como essa mulher veio de uma região bem distante, outro estado, à procura de emprego, estava sem recursos financeiros e não podia se submeter aos exorbitantes preços para alugar um imóvel, ela sugeriu cuidar dos meninos em troca de moradia.

Como as duas amigas alternavam seus expedientes no posto de saúde, que funcionava em sistema de 24 horas, a mãe trabalhando durante o dia, e a outra só à noite, não haveria desencontros no cuidado das crianças, nem prejuízos para ambas. Apenas as possibilidades de vantagens e de benefícios eram esperadas desse acordo entre as duas sacrificadas mulheres, embora sempre restasse um aperto no peito.

A única recomendação que a mãe fazia aos filhos, quando estavam entregues à improvisada babá, era que houvesse cooperação entre eles, talvez um auxílio mútuo, para não sobrecarregar a amiga. A mãe argumentava que Jão, por ser o mais velho, deveria se comportar como o homem da casa. Desse modo, os artifícios maternos visavam o frágil ego do menino, massageando-o, para fazê-lo se identificar com o lugar de homem feito e assumir precoces responsabilidades - embora seu pai não representasse melhores exemplos. Segundo a mãe, Jão deveria tomar conta do seu irmão mais novo, o Paulinho, não perdê-lo de vista, sempre mantê-lo presente, participando das mesmas atividades.

Jão, a princípio contrariado, resistiu em ter que brincar com o pirralho de seu irmão. Ouviu primeiro os códigos de sua faixa etária, pela vergonha que sentiria em cuidar de um bebê, perante o seu grupo de outros meninos de 11 anos. Mas depois acabou cedendo às palavras maternas. Passou a se orgulhar por ocupar o lugar do homem da casa – embora quisesse mesmo era ocupar o lugar do homem para sua mãe. Ficou vaidoso principalmente pela possibilidade de ganhar o estatuto de filho responsável, alegria da mamãe – o filho preferido!

Mas o sentimento de regozijo de Jão, por ter agradado sua mãe, logo foi substituído por uma insatisfação sem limites, quando pôs em prática os cuidados com o irmão mais novo, vigiando-o. Paulinho estava se intrometendo em assuntos de gente grande – que só meninos de 11 anos conhecem – ameaçando contar à mãe todos os “segredos” que ouvia das conversas dos adultos de 11 anos que ali estavam. Aqueles debates eram confidenciais, proibidos para menores de 11 anos e para os pais.

- Quero ir embora, Jão! Você falou tanto de café com leite, que eu fiquei até com fome...

- Não pode! Você sabe que a mãe pediu para que eu cuidasse de você, não sabe?

- Será que a tia comprou aqueles biscoitos recheados para o lanche?

- Você acabou de almoçar, Paulinho! Toma jeito, menino!

- Hi! Ta parecendo até a mamãe...

- Estou parecendo nada! Sou homem! O homem da casa.

- Se existe um homem da casa, só pode ser o pai. Mas ele não está mais em casa...

- É... Mas na falta do pai, o homem da casa sou eu!

- Eu também sou homem, pô!

- Você é pirralho, isso sim!

- Sou nada, tá?

- Você é um nada mesmo, chato!

- Vou contar tudo pra mamãe! Vou falar tudo que eu sei! Você e esses seus amiguinhos ficam aí correndo um atrás do outro, dizendo que são polícia e ladrão! Você só anda com bandido. E não me deixa ser nada! Eu só fico correndo para um lado e para o outro, pegando todo mundo, sem ser polícia nem ladrão!

- Eu já disse! Você só serve pra ser café com leite.

(...)

- Crianças! O café já está na mesa. Venham logo. Sua mãe virá hoje mais cedo. Ela mandou dizer que está trazendo biscoitos e uma caixinha de leite integral, que vocês tanto gostam de beber gelado. – Disse a dedicada babá improvisada.

Os dois meninos ficaram satisfeitos com a vinda da mãe, e esse acontecimento seria muito festejado.

Com o tempo, Jão percebeu que seu irmão mais novo nunca fôra neutro nos assuntos familiares. Apesar de ser muito criança ainda, por ser 6 anos mais novo do que ele, sofria em silêncio com a separação dos seus pais. Mas sozinho, sem a ajuda de ninguém, com os seus 5 anos de idade, nas brincadeiras como café com leite, sendo vigiado pelo homem da casa, seu irmão mais velho, podia elaborar o afastamento paterno. Aquela brincadeira, junto à sua condição de café com leite – um alimento que às vezes faltava à mesa – reproduzia o cotidiano da vida. Corria sem cessar atrás de todos, de polícia e de ladrão, sem conseguir pegar ninguém, pois seus toques não tinham valor no jogo. Paulinho estava assimilando o luto, mesmo de forma lúdica. Passou a entender, depois de mais velho, que café com leite, todos nós somos. Vivemos correndo atrás de nossos ideais, mas eles sempre escapam. Quando nos aproximamos, mais distantes ficam. Quando o tocamos, nossos atos não são válidos, pois eles nunca estiveram lá.

Com essa lição, ensinada por sua incômoda posição de café com leite, Paulinho não enxergava mais a saída do pai como um abandono da família. O pai era só uma pessoa, e não um objeto ideal que poderia ser guardado. Mesmo sendo tocado, nunca seria o suficiente para tê-lo em suas mãos. O pai também era café com leite – mas ele não via sua condição, não via a si. O pai era o lado infantil da história. Já o seu filho, o homem da casa.


CONTO ESCRITO por ALEX AZEVEDO DIAS.

quarta-feira, 2 de fevereiro de 2011

Diálogo?
















- O que é isso? Será que existe?

Nenhuma resposta foi ouvida do outro lado.

- Não é uma coisa. É uma pessoa. Você parece alguém... Mas quem?

O silêncio continuou imperativo. Nada foi escutado. A não ser o mesmo silêncio que, em seu aparente vazio, talvez estivesse dizendo algo.

- Eu me vejo aí! Mas, ao me ver, não sou mais eu quem olha. O olhar que eu vejo é apenas um furo pelo qual nada vejo do outro lado.

Perante tantas questões formuladas, a imagem sorriu para seu interlocutor – complacente – compreendendo que quanto mais pensava, mais o insolúvel conflito se impunha.

- Por que você não fala comigo? Ou você fala, e eu que não a ouço? “... a ouço...” Estou falando no feminino, como se fosse para uma mulher. Será que você é uma mulher?

- Não sou o que você quer nem o que pensa que eu seja! – Manifestou a suposta interlocutora.

- Você fala! Estou ouvindo agora...

- ...

Diante do retorno da falta de som, insistiu para que houvesse uma nova manifestação do outro lado:

- Por que voltou a se calar? Falou por um instante só para me deixar desejante? Acha que eu não pude ouvi-la da maneira que gostaria? Desculpe-me por não a ouvir como você merece.

- O que quer de mim?

- Não quero mais! Já consegui o que queria... ouvi-la novamente.

- Não fale comigo como se eu fosse uma mulher! Não tenho sexo. O que sou não me dá o luxo de ter alguma coisa.

- Como não?! Você tem a voz, você fala...

- O que você ouve não sou eu que digo.

- Esse som não é de sua voz?

- Não há som. Você está lendo. São só palavras escritas.

- Eu a ouço, não pode negar.

- Você ouve o seu som. Está lendo em voz alta.

- Esse não é o som da minha voz. Eu não falo assim!

- Você que pensa... Já ouviu o som da sua voz por ouvidos que não são seus?

- É claro que não! Senão, não poderia estar me ouvindo, se os ouvidos com os quais escuto, não fossem meus.

- Você acabou de negar a minha existência. Você não pode estar me ouvindo, pois os ouvidos que me escutam, não são seus. Eu ouço você. Ouço a minha própria voz.

- O que quer de mim? Não posso respondê-la.

- Você não pode se ouvir...

- ...

Na falta de resposta de quem começou o diálogo, do outro lado, continuou sozinha:

- Ei! Para onde você foi? Cadê você? Eu não queria assustá-lo! Perdoe-me os maus modos.

O silêncio não foi quebrado.

- Não é uma pessoa. É uma coisa. Isso parece algo... Mas o quê?

Apenas um ruído de folhas amassadas foi ouvido.

- Eu não me vejo aí! Por não me ver, eu sou quem olha. O olhar que eu não vejo, é tela preenchida de letras mortas.

(...)

Cansada, fechou o livro e foi dormir.

(...)


TEXTO ESCRITO por ALEX AZEVEDO DIAS.