quinta-feira, 18 de novembro de 2010

À Janela









São quatro horas da manhã. Ouço o canto dos primeiros pássaros rompendo a densa escuridão, anunciando o amanhecer.

Abandonam suas núpcias, alvoroçados, espantando os últimos sinais da preguiça familiar. Convocam, em corais simultâneos e desengonçados, o colorido que descobre a superfície daquela cidade que avisto pela janela.

A rua ainda está vazia. O silêncio só é cortado pelo canto dos pássaros, por alguns taxistas já em seus respectivos pontos, a espera de quem trabalha longe e que pode pagar para não atolar em lotações, e pelos comerciantes começando a preparar suas lojas. Nessas lojas, às seis da manhã, os pesados portões descerram, convidando os funcionários a marcarem seus pontos no serviço diário.

Logo o movimento cotidiano abafará o melódico coral dos pássaros. Desarmônicas e desafinadas notas – que não são as musicais, e sim cifras monetárias – marcam o descompasso de um pregão ao ar livre, mesmo sabendo que já não é mais tão livre assim.

O som estridente do contato das inúmeras solas de sapato com as calçadas nuas, cobertas por algumas folhas secas, imita as marteladas em pregos retorcidos, resistentes, teimosos, tortos, mas frágeis por serem de antemão partidos, quebrados.

Esse pregão descompensado das notas monetárias preenche o vazio de vidas seqüestradas, recolhe o suor em funis de ópio, prega os passos na ilusão do movimento contínuo.

Eu ainda não preguei os olhos. Insisto em observar fantasmas brincalhões filtrando a paisagem que se ilumina à janela. O sol vai nascendo com suas tímidas silhuetas, contornos desbotados, vagarosos, corpo lento, sonolento.

Labaredas fictícias eclodem em imagens ausentes de mim. O que vejo é a tela de meus olhos. Esfrego meu rosto com furiosa obstinação. As pálpebras pesam. Uma fina neblina desperta a visão esfumaçada dos fantasmas febris e fixa a nitidez da miragem bordada de sentidos.

Como pode? De repente vou para outro lugar...

Decolo no avião. Passageiros e toda a tripulação confiam em minha competência e habilidade com a aeronave. Encontro túrgidas nuvens, vistosos úteros. De ímpeto, furo-as bem no centro, no umbigo de uma vida outra antepassada em futuros próximos.

Estou sobrevoando as minguantes rechonchudas, e assisto ao esvaziamento daqueles inflamados corpos ocos, feitos de água, translúcidos, ovelhas sem pele, velhas.

Furadas, derramam a seiva fecunda das bolsas estouradas, paridas.

Bolsas de valores.

O pregão fura a bolsa roubada pelo menino que tem o estômago furado. Sem bolsa, o desvalor, revaloriza-se.

Caio em queda livre. Aquele gigantesco corpo mecânico evaporou, dissipou-se. O avião era feito de água como as nuvens. As nuvens, antes condensadas, desfizeram-se em liquefação. A lataria, antes sólida, sublimou-se.

Enquanto caio, náuseas invadem minha restrita audição. Ouço uma voz ofegante, desconcertante. Estou seguro em seus fonemas, embalado em notas – nem musicais nem monetárias. Anotações firmes, traços aos quais me identifico, existência.

Continuo caindo. Ultrapassei o chão. Não há nada que ampare minha queda. Tento balançar os braços, agitar as pernas numa desesperada tentativa de planar, boiar no mar, flutuar como outrora ouvira o canto dos pássaros.

Caindo, caindo... Penso em segundos reprimidos, com aperto abafado, inacabado, minha vida que insiste em passar sem mim. Presença de um vazio, da ausência consolidada e volumosa, bordando fiapos de sentidos e sensações. Trabalho, esposa, filhos, minhas escolhas em queda livre. Queda presa, desprezada. Livre prenda, predador, pregada. Pegadas sem pés. Rastros indizíveis, dizimados, apalpados pelo tempo insólito.

Queda! Livre! Liberdade!

Permaneço em queda, em velocidade constante, sem aceleração. Inércia! Mas nessa inércia, meu corpo começa a se apagar. O atrito do ar desprende a camada mais externa de minha pele. Estou desintegrando suavemente. Indolor. Tenho a sensação de poder, atravessando barreiras, indo de encontro ao nada, ao sem fundo. Túnel escasso que traga o infinito.

Estou cada vez mais transparente, matéria fina, ambiente fino, granfino. Sem parente, sem dente, sozinho. Ser único, contente, exuberante, existente.

Desintegrei. Meu corpo foi reduzido a um pensamento. Mas um pensamento acelerado, ganhando velocidade, despencando. A rapidez é tanta que virei uma bola de fogo perdida em explosão, incerteza enforcada, trem bala, foguete desordenado...

Choquei-me vertiginosamente com algo mole, consistente.

Cheguei finalmente ao fundo?

(...)

Parece merda!

(...)

São dez horas da manhã. Que aflição!

Acho que peguei no sono ouvindo o canto dos pássaros.

Preciso trabalhar! Estou atrasado!

(...)

E a cidade - pela janela do seu quarto, na correria afinada e tumultuada, no bater das solas de sapato - seguia com nítida clareza, a verdade órfã e ritmada da eterna rotação e translação dos homens.

CONTO ESCRITO por ALEX AZEVEDO DIAS.

quinta-feira, 11 de novembro de 2010

Sobre os Excessos Teóricos na Psicanálise


Ao longo de minha prática clínica, e em minha experiência como analisando, comecei a perceber que há um excesso de teorizações que é inútil, impraticável, pois não se presentifica no contexto transferencial propriamente dito, que consiste numa singularidade em cada encontro analista/analisando. O contexto transferencial é uma pecualiaridade tão específica, que fica impossível de teorizar. Apenas podendo ser uma experiência transmitida. O encontro, em sua especificidade, tem a ver com um silêncio ativo por parte do analista, pois há ali uma presença física, ao menos. Acho que negar a existência do analista, em sua complexidade, talvez seja o maior representante de resistência, de recalque, de muitos lacanianos. Às vezes, lendo alguns teóricos de orientação lacaniana, fico com a impressão que não há práxis, mas apenas uma fria abstração que não condiz com a real experiência clínica da psicanálise. Por isso, sem me distanciar do movimento lacaniano, estou dando atenção a outros autores da psicanálise, esquecidos na contemporaneidade. Mas não sem retornar sempre a Freud, lugar do qual nunca deveríamos ter saído enquanto psicanalistas.

Por mais que neguemos, não há só o texto do analisando em construção pela escuta do analista. Pois essa escuta está contextualizada na transferência. E a transferência é, mediada pelo discurso do analisando, uma relação entre duas "subjetividades", analista/analisando. Ou seja, "nunca é sem um fora de contexto", quer dizer que até os atos-falhos só ocorrem num determinado contexto, numa determinada posição transferencial, numa determinada condução analítica, inclusive contextualizada pelas características afetivas do psicanalista.

Teoricamente, não é uma relação intersubjetiva, mas não é sem isso. Por mais que esse seja o "ideal" de análise, a dessubjetivação do analista, para se disponibilizar como semblante da falta, do objeto causa de desejo, algo da "subjetividade" do analista está implicada na transferência, fazendo não só uma escuta do texto do analisando, mas trazendo em cena um contexto transferencial, com a presença real do analista. É o discurso do analista, a escuta como desejo do analista, esvaziada de libido, e sem linguagem própria. O desejo do analista é esse oco de pulsão, vácuo do real que suporta o discurso do analisando. A escuta do analista é apenas do texto do analisando, em sua constituição, pois não pode operar pelo artifício da metalinguagem. A linguagem, que mediatiza a transferência, é a fala do analisando, e nada além nem nada aquém.

Obviamente que o analista não intervém palpitando, nem dando conselhos. O analista, que é uma função, ocupa uma escuta do desejo que emerge no discurso do analisando. O analista não coloca na transferência sua suposta subjetividade. Não há eu do analista numa análise. O que estou dizendo, é que, nesse silêncio que o analisando constitui, há algo indizível desse analista que, além de sustentar a especificidade transferencial, também participa com uma presença real que está para além das ficções elaboradas durante uma análise. O analisando, em seu endereçamento, como suposto saber, constitui a função do analista. Não há analista fora desse contexto transferencial. O analista é criado pela fala do analisando, tão somente assim.

Também é importante salientar que consiste num engano acreditar na triangulação edípica, da família nuclear moderna, como uma estrutura real... a questão não é estrutural, mas produzida como efeito simbólico, é a triangulação funcional que conta, e não real... não existe esse papo de papai, mamãe, filhinho fora de discurso... isso não é real... é apenas efeito simbólico, funcional.
O falo é esse significante da falta, que se inscreve quando a função materna, por ser um outro castrado, convoca a interlocução do terceiro por lhe faltar completude... antes mesmo da possibilidade desse terceiro real interceder, a própria castração da mãe, convocando-o, já significa a instalação da função paterna, como metáfora da lei já transmitida pela função materna.

Texto escrito por Alex Azevedo Dias.

domingo, 7 de novembro de 2010

Passagens

Sentimentos de plástico. Sorrisos de plástico. Flores de plástico que vencem o implacável tempo, verdadeiro consumidor dos bens não duráveis. O sentimento e o sorriso, se não de plástico, são bens? São duráveis? O plástico resiste, não é biodegradável. Permanece na natureza por milhares de anos, enquanto seu vizinho, orgânico, apodrece sem o menor perdão. Matérias perecíveis, cujas mortes espreitam, silenciosamente, na contagem regressiva. A beleza está na morte. É o que fenece que pode ser admirado, belo, pois anuncia sua decomposição. A beleza é a morte que espreita. Ardilosa. Sorridente. Dentes amarelecidos, desvanecidos, falecidos. Já os dentes de plástico, são brancos, brilhantes, alvejantes, mas cegos. Iluminados, mas sem luz. Sorriso amarelo, artificial, de uma imóvel plástica. Os sentimentos de plástico são atemporais. Já os sentimentos plásticos, elásticos, marcam tempo. Morte e vida. Os sentimentos plásticos são flexíveis. Uma elasticidade que regula temporalidades. O plastificado, o de plástico, é durável, mas morto. A plasticidade é efêmera, mas viva!

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As letras não se contentam com a fixação das palavras. A lei tem morta sua letra. Elas são transgressoras de berço, desnaturadas. Não são fictícias, falsas, mas sim ficcionais. As letras não são criadas pelo homem. Pois são elas que criam o homem. O homem é ficção inventada pela capacidade de mutação das letras, por suas inventividades, fertilidades, suor e orgasmo. Pequeninas partículas indivisíveis. Às vezes inauditas ficam. Malditas. Porém, derramam explosões de dizeres. Permanecem indizíveis nas bocas febris. Mas tergiversam incansáveis, contornando, rabiscando, escorregando na silhueta dos corpos humanos. Os Homens são o efeito, e não a causa, do sentir das letras. São sentidos pelas letras. Mas jamais conseguem dar sentido a elas.

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Quando escrevo, ela se esconde nas letras, entrelinhas, e por saltar a minha frente, visível em minhas palavras, eu não a vejo. Brinca comigo, mergulha nas plumas listradas das folhas de rosto, ainda quentes, saídas do forno. Mas quando um pingo distraído mancha o papel, não mais em branco, úmido, é ela que inunda as linhas inteiras. Desavergonhada, estridente, renitente. Paira. Quanto mais escrevo, menos a vejo. É ela que me vê, é ela o que escrevo.

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Uma rosa no livro. Um livro sobre rosas. Poemas escritos por um autor, espalhados pelas páginas espumosas de arfantes bocas em botão de flor. Histórias que contornam e tecem um antes, um durante e um depois da rosa. Um leitor que, em pé, lê a rosa da mulher e a mulher da rosa. Olhares que se encontram, distanciando-se. Olhares que se desencontram, aproximando-se.

Um livro, uma rosa. Ambos possuem histórias. O livro, escritas pelo autor, e reescritas pelo leitor. A rosa, contadas pelo mesmo leitor que, ao ler o livro, especula as entrelinhas do sentimento daquela que porta a rosa e que fita o livro. Desatinos cruzados. Destinos que não se vêem. Contingências segregadas, convergindo em passos distintos, ao mesmo ritmo. Dois objetos que suportam milhares, mulheres, histórias. Segredos cortantes, gargantas inflamadas. Gritos calados, calejados, surdos. Uma rosa no livro. Um livro sobre rosas...

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Pétalas derramadas no suor de uma mulher da vida. Pétalas que cobrem o corpo de uma menina que a morte espreita. Mulher da vida, tem vida? Mulher da morte, habita? A menina adormecida, pés sujos, compõe, com uma respiração pausada, o traço entre duas estrelas.

A batuta do maestro, regendo a sinfonia celestial e o bailar do dueto estrelar. As pétalas, na visão do homem com a menina no colo, platéia estarrecida e extasiada, são aplausos que ovacionam o final do espetáculo. A menina continua adormecida, e a mulher da vida, que a morte não leva, num gesto doce e angelical, banha a personagem principal, invisível mas existente entre as estrelas, com as pétalas que aquecem, perfumam e colorem o feio recusado.

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Felinos, com seus movimentos sinuosos, de bailarinos do municipal, revelam-se acrobatas quando um filete de água ameaça encontrar suas patas. Não lhes importam a procedência, contanto que seja um líquido acumulado em seus passos, ou escorrendo sorrateiramente, cambaleando pelo alinhavo que as folhas secas costuram no seio da terra matinal.

Se alguma coisa mudou com o passar dos tempos, não foi a potabilidade da água, a pureza do ar, ou a limpeza das calçadas. O cinto que não mais regula e equilibra os amores, as lágrimas, a respiração ofegante ou suave, na verdade é escrito com a letra “s”. Um sinto muito, mas o olhar de criança se perdeu. Barquinho catártico, viajando na ferida que não estanca as gotas ressecadas da transpiração. Poderia ancorar em mares revoltos e não antes navegados? Agora, se partir, ancorar-se-á esgotado. Triste fim, não de um barco, mas de uma criança que faz de conta.

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Pingos grossos de uma pancada de chuva de verão. Passageira. Passa sempre de qualquer maneira. Os pingos grossos espancam a cabeça do menino, como seu severo pai fazia ao ensinar-lhe a lição. "- Seja correto, menino! O erro é dos fracos..." Cresceu dormindo. Machucado pelo avesso da moral. Subindo, ofegante, no pau de sebo do moral. Crescer. Descer. Crê ser? "Desser"? "- Sê forte, meu filho!", disse o preocupado pai com a educação do filho. Errar é humano? Talvez seja apenas o erro que faz o humano, que o humaniza. O acerto acentua a máquina desalmada. Errar, errância, errante. O acerto é tiro e queda. Passos únicos, certeiros. O acerto não varia. Não anda avariado. É objetivo. Já o erro, não... O erro é múltiplo, diverso, versátil. Errar não é só humano. É a real maneira de se humanizar.

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O insone é aquele último sobrevivente, resistente, vive com a morte dos demais. Enquanto todos dormem, incluindo o cachorro e a amada, o insone reina sozinho junto aos corpos embalsamados, mumificados em seus desvairados desejos.

O lençol que recobre a amada simboliza o beijo da despedida, mortalha que apaga as arestas das triviais incompreensões de vigília. Até o cachorro, que embora não deseje, também é sem sentido quando acordado, dormindo passa a existir estirado no mármore da plenitude racional.

Interessante quanto as pessoas, em seus afazeres cotidianos, parecem zumbis atônitos, repetindo os movimentos imbecis dos cães atrás de seus rabos, ou deslizando para lá e para cá, saltitantes. Agora, quando dormem, o mundo faz o mais absoluto sentido. Os corpos estáticos, do cão, da amada, durante o sono, vivem plenamente uma existência repleta de significado, racional, contra a ausência de verdade da vigília.

O insone é esse sábio que pode observar o ruído silencioso do ressonar, respiração pausada, do cão e da amada, e não se entregar a homogeneidade plácida que traga a existência na imperial verdade do imutável. A verdade não está nos hesitantes marasmos do dia a dia. A verdade está na placidez dos corpos em repouso. A verdade está na morte. A verdade está no corpo em sono. Bonecos cenográficos. Manequins de vitrine. Neles está a verdade. A verdade está no insone que vê o em sono.

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Poemas escritos por Alex Azevedo.

sábado, 6 de novembro de 2010

Dois Contos


Ninfo Girassol

Nas labaredas de sua fiel discórdia, Ninfo matutava. Passava horas, dias, meses, com o corpo largado, cabeça pendida e repousada sobre o ombro direito, braços lânguidos e noturnos depositados sobre o espaldar de uma cadeira de balanço.

Quem de fora, ao longe ou há pouca distância o via, nenhuma vida era captada de suas lívidas e amarelecidas faces. Parecia uma escultura decadente. Em sua catatonia, Ninfo permanecia lá, imóvel, paralisado... Nem um fiapo de músculo era contraído. Todos os tipos de insetos usavam seus membros hirsutos como trampolim para ganharem impulsos em seus vôos desafiadores ou preparando táticas para que seus alimentos fossem atraídos com maior liberdade.

Do seu olhar cristalizado e estático, uma fina luminosidade cortava os ventos castigados por uivos de lamúrias. Ninfo estava condenado a maquinar. A turbulência da vida agora reduzida ao invisível, sem que os fenômenos rompessem a crueldade dos olhinhos curiosos dos transeuntes. Ninfo pensava ininterruptamente, desbotado, desvairado, a mente girando, tumultuada, incandescente, consumido pela fogueira das reminiscências.

Como tantos pensamentos podiam vagar naquela mente, com aquele corpo sentado, jogado, sem nem ao menos mexer o diafragma para respirar? Um corpo morto, inerte, mas ainda assim, vivo?

Anos se passaram, os vizinhos, os pedestres esporádicos e curiosos que por ali passaram e com tanta insistência tentavam trocar algumas palavras com Ninfo, mas que apenas eram monólogos desesperados, começaram a perder o interesse, até o absoluto isolamento assolar o ambiente em que jazia o corpo vivo de Ninfo.

Houve uma época na qual os habitantes do local desistiram de tentar tocar, sacodir, empurrar o corpo de Ninfo, na esperança de que reagisse, respondesse, manifestasse algum sopro de vida. Na verdade, as pessoas sentiam a ferida em suas vaidades por não terem a capacidade realizada de suas virtudes curandeiras, de ressuscitarem Ninfo. Todos achavam, cada um por si, que só suas palavras mágicas, de pessoas predestinadas e missionárias, serviriam como bálsamos salvadores que despertaria Ninfo de sua síndrome de Lázaro. Mas Ninfo continuava lá, sem nenhuma ação visível, apenas seus pensamentos pulsavam.

Sob a ação resoluta do tempo, a figura de Ninfo foi incorporada à paisagem local. Por algum poder daqueles que a natureza não explica, Ninfo foi visualizado pela apaixonada religiosidade do povo, como uma entidade mística, emanando vibrações esotéricas, pela crendice desamparada de fiéis romeiros. Eles se encatavam quando em suas romarias e procissões, vislumbravam aquele ser coisificado agarrado à sua cadeira de balanço.

Assim como a Santa que chora, composta pela imaginação aflitiva e carente dos devotos, Ninfo foi associado a uma estatueta santificada de carne humana. Milagre!

Formaram-se filas gigantescas, pessoas vindas das mais longínquas regiões. Forasteiros fervorosos, curiosos desavisados, todos queriam ter a oportunidade de que a graça divina concedesse cinco minutos com aquela estatueta humana, investido com um poder místico conferido pelo reino dos céus.

As pessoas gritavam, caiam em prantos enroscadas nas pernas de Ninfo e clamavam pela salvação. A multidão que se agregava ao redor de Ninfo, pedindo graças e misericórdias, era tamanha, que até a polícia foi acionada pelo governo federal para coibir possíveis balbúrdias. Muitos forasteiros e ciganos que ali chegavam, instalavam-se nos arredores com suas animadas farândolas, constituindo comércios e movimentando o capital.

A polícia passou a intervir, dispersando os desordeiros, pois a agitação do povo, em busca de graças divinas, ameaçava a pacificação dominante das auréolas políticas. Logo, os forasteiros formaram povoados e aldeias, dominaram a economia local e reivindicaram melhores salários para os operários. O governo, apavorado, sob a ameaça de perder a autoridade e hegemonia, baixou um decreto, isolando o corpo de Ninfo, objeto de adoração. De sagrado, Ninfo foi tombado pelo patrimônio cultural da república.

Temendo a agitação religiosa que afetava a economia do governo, Ninfo foi desmistificado pelo Estado laico, que rapidamente o batizou com uma plaquinha de cobre, informando que aquela estatueta humana representa um revolucionário da história de fundação da cidade, um mártir, que contribuiu para sua independência.

De entidade mística, Ninfo passou para ponto turístico. Como a mente da maioria só funciona movida pelo sobrenatural, na esperança de receber graças e de ser vítima de milagres e mistérios do desconhecido, e como ninguém tem tempo para saber sobre sua própria história, então Ninfo foi logo esquecido.

Virou uma mancha solitária numa paisagem mofada e esverdeada. Os musgos e as teias de aranha cobriram todos os espaços do corpo de Ninfo. Os pássaros em sua cabeça, fizeram mansões em forma de ninho. As aldeias e os povoados foram desmanchados, pois não havia mais interesse para que as instalações do povo ali se demorassem. Todos partiram e o único vestígio deixado, foi um Ninfo santo que ficou tombado pela falta de memória.

As estações do ano transcorriam furiosamente, o tempo devorador consumia as gerações que se sucediam, alterando claramente a paisagem. O único elemento constante que permanecia imóvel, compondo a marcação do tempo desalmado, era a figura hirsuta e rígida de Ninfo.

As teias e os musgos caiam combalidos pela força dos ventos, os filhotes dos pássaros nasceram esfomeados, com seus biquinhos abertos, e os ninhos se desfizeram da cabeça de Ninfo, mas logo retornavam para aquele corpo que tão docilmente e passivo os acolhia, em outras primaveras.

Ninfo estava abandonado pelo povo sedento de compaixão e amor a si. Em sua cadeira de balanço, cabeça pendida para o lado, repousando sobre o ombro direito, com seus braços lânguidos e depositados no espaldar, Ninfo jazia vivo, inerte, pulsando apenas seus invisíveis pensamentos.

Foi quando, de repente, num estalo em paroxismo, viu as sementes de girassol em seu pensamento. Deu um salto, desenferrujando as juntas, e abandonou aquela posição imóvel que por décadas manteve sem pestanejar. Ninfo entrou em casa, pegou um saquinho plástico na gaveta da cômoda, deslocou-se até o jardim. Lá, encontrou uma caixa de papelão, colocando-a no braço de sua cadeira, e fez alguns buraquinhos com uma espátula. Depois, "plantou" as sementes na caixa e exclamou com satisfação: "É a flor que virará para o Sol!"

Assim, depois de regar a caixa de papelão, voltou a se sentar na sua cadeira de balanço, apertou um botão imaginário e foi assistir à sua "televisão". Retornou a sua antiga posição imóvel. Não movia nem um músculo. Em sua cabeça, um único pensamento... esperar os girassóis crescerem em direção ao Sol, da tela de sua "televisão". Com o pescoço dobrado, repousando a cabeça no ombro direito, um fino raio de sol brilhava em sua envelhecida pele cor de musgo.

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Lágrimas de Vidro

A ventania anuncia a tempestade. A vidraça colonial, pela qual me entrego absorto à paisagem bucólica, tamborila com as primeiras gotas de chuva. Resisto em abrir a janela. Prefiro mantê-la trancada. Assim evito que a água escorra pelo meu rosto adormecido.

Com as mãos apoiadas no vidro, encosto a testa na janela, observando o embaçar de minha respiração tardia. Vejo algumas aves tentando encontrar abrigo e proteção, contra as gotas de chuva que engrossam a passos largos. Caminho na contra mão do tempo, tropeçando nas ondas que me levam a margens negadas.

Mesmo dentro de casa, longe do alcance das nuvens que desmancham e desabam seu suor sobre a suave superfície do gramado no jardim, estou exposto a minha devastação exterior. Ásperas gotículas brotam de meus poros fósseis, esmaecidos, hidratando uma pele enrugada e quebradiça.

As rugas não foram desenhadas como resultado final de uma longa vida, mas pelas dobras da ausência de tempo. São rugas fabricadas para escoarem as lágrimas numa estranha e sinuosa face que não me pertence, mas que apenas identifico a semelhança com outro que nunca fui, diante do espelho.

O céu chora com espasmos, contorce em risos gélidos, mas essas lágrimas não podem me tocar. Meu contato com esse mundo cruel e vibrante, é impenetrável. Só pelos relâmpagos que posso imaginar, nos vidros de meus olhos, sempre através da janela fechada.

A água que escorre do lado de fora, na janela, coincide com a mesma trilha ressecada que belisca minhas pálpebras taciturnas. Por que a janela deixa rolar a sua chuva, enquanto meus olhos continuam latentes, vazios, secos?

Encosto meus olhos na vidraça, e a lágrima que rola lá fora, é a mesma que rola em meu rosto transparente. Meu rosto é aquela janela! Deslizo meus dedos no vidro chuvoso, e não sinto sua textura. É liso e gelado. Fico atônito e começo a implorar ao anjo demoníaco que envidraçou o meu rosto, que o enquadrou no vidro inanimado.

Minhas mãos tremem, perderam o tato, adormeceram. Procuro desesperadamente os meus olhos, mas nada vejo... não os encontro. As lágrimas, do lado de fora, continuam descendo do rosto de vidro, sem vida. Tento sorrir, mas não sinto o meu sorriso, nada existe... só água, água e mais água... Só tem água, descendo, rolando. Porém, meu rosto está seco, liso e frio.

Onde estão minhas rugas? Não tenho mais boca, não posso falar. Não tenho mais nada... só uma frágil superfície envidraçada. No que me tornei? Que criatura grotesca está surgindo, sem que eu possa tocar, nem olhar, nem sentir? Preciso destruir esse monstro, esse eu disforme e inanimado, de vidro! Abominável...

Peguei distância, tomei impulso... e... atirei-me contra o meu próprio rosto de vidro. Bati com tanta força naquela fina camada espelhada, com a esperança que meu rosto perdido, envidraçado, voltasse para o lugar.

Um líquido quente e viscoso desceu de minha cabeça. Mas não é mais frio como a chuva que continua a cair do lado de fora. Estou exultante, acabei com a morte!

Opondo a minha alegria de breve duração, empalideci! Fiquei apavorado quando percebi que meu rosto se quebrou com o impacto. Milhares de caquinhos cortantes e brilhantes, caíram sobre meus pés. A chuva fria e o vento bruto invadiram meu quarto, consumindo-me.

Olhei para cada caquinho do meu rosto despedaçado e fiquei admirado e perplexo quando me dei conta que em cada pedaço de vidro do meu rosto partido, pares de olhos me fitavam. Meu rosto se reproduziu, multiplicou-se em todos os caquinhos. Estou aprisionado nos cacos de vidro, mas descobri minha identidade. Sou imortal, estou espelhado em infindáveis pares de olhos!

O que está acontecendo? O líquido quente e viscoso que insiste em escorrer de minha cabeça, agora encobriu quase todo o meu lívido corpo, colorindo-o. Não mais consigo ficar em pé. Não tenho mais face, mas percebo o líquido grosso descendo com volúpia de minha cabeça. Meu choro vermelho caiu em todos os vidrinhos pelos quais meu rosto de multiplicou.

Meu choro tingiu de uma coloração avermelhada, a minha face estilhaçada, animando-a com o tom da vida. Eis a cor da vida! Estou quase... quase... quase...

E seu corpo pálido, já sem uma gota de sangue, despencou inerte sobre os inúmeros cacos de vidro, todos tingidos pela cor da vida, que foi transferida, e a eles se fundiu.


escritos por Alex Azevedo

sexta-feira, 5 de novembro de 2010

Paz Guerra

Era uma vez uma região fictícia na qual os habitantes viviam a guerra, a fome, o genocídio. Uma região belicosa e em constante litígio desde eras imemoriais. A emancipação dessa região ocorreu por derramamento de sangue, em confrontos separatistas, ostentada pela bandeira da esperança, paz e igualdade social.

A intolerância étnica e cultural permaneceu por muitos anos, marcando a ascensão de líderes carismáticos. O tempo nessa região litigiosa corria com mudanças abruptas, visando seu fim. Líderes que impulsionavam a logística e as negociações armamentistas, em suas ausências emocionais, refletiam uma voracidade felina para com seus adversários. Até mesmo representantes do seu próprio povo que se mostravam rebeldes e opositores de suas empreitadas macabras, eram duramente reprimidos.

As guerras persistiram, alimentando os gozos vorazes de seus algozes. Tanto um lado quanto o outro tem em comum o ideal da vitória, da fama, do poder, da afirmação beligerante e de potência destrutiva, usando seus adversários como objetos para obtenção do poder.

Ganhar a guerra? Demonstrar força em detrimento de seus oponentes? O frenesi do instante efêmero em que o grito de vitória reverbera lancinante, cortando a leve brisa de outono. Mas e depois? E quando a guerra acaba?

Vem a paz! E a conseqüência da paz, é a rotina, a imobilidade, a paralisia... Cadê o movimento, o combate investindo a queda da figura do inimigo? O ideal da paz?! Uma coisa é combater em favor de um ideal, do ideal da instalação da paz.

Mas e quando a paz realmente chega e substitui o ideal pela concretude imóvel da realização? Decreta-se a morte do ideal? Obter o ideal é matá-lo? É matar o movimento que busca esse ideal?

...Era uma vez uma região fictícia onde a paz reinava. Seus habitantes entediados, fumando seus cachimbos, deslocavam languidamente seus corpos pelas flores e gramados suavemente aparados.

A monotonia dos dias perpassa como se o tempo não passasse. A ausência de tempo é o atemporal. A inércia é um sucedâneo do tempo, imóvel. Mas, num clarão repentino, novos ânimos inspiraram os habitantes dessa região, quando um estranho forasteiro trouxe uma mensagem auspiciosa cujo conteúdo falava de uma tal "guerra".

Ouviram essa palavra absolutamente desconhecida, que até então não saiu dos lábios nem da caneta de nenhum homem. O entusiasmo se generalizou. Mesmo que assustados, houve uma possibilidade vívida de que essa obscura palavra, proferida por um forasteiro, pudesse nomear a esperança de novos ares.

Os dias que se seguiram foram ocupados por um intenso movimento em que a separação de dois grupos adversários, preparados e organizados, ostentando a bandeira com a ideologia da "guerra", começou a combater entre si, visando a obtenção desse nome que veio como promessa de por um fim à condenação da paz, ao genocídio da monotonia.

E a guerra se seguiu, dias e noites, visando sempre a palavra "guerra" como ideal mais nobre a ser impulsionado, contra os inimigos vestidos com o manto branco da paz.

Escrito por Alex Azevedo

O Pai

Um raio cortou a paisagem enegrecida por uma densa miragem. Gritos virulentos e vociferações das trovoadas, marcam o regresso da matéria ao ventre da terra mãe. Aristides, deitado em sua cama, entrou novamente em contato com o medo perdido em sua infância.

Lembrou da época em que sua mãe dizia que os trovões sinalizavam a ira de seu pai, falecido antes mesmo de seu nascimento. Sua mãe quase não falava desse pai morto. Ele só retornava ao gozo da vida, quando sua mãe, sem saber a quem recorrer para educar Aristides, ensinando-lhe boas maneiras, evocava o fantasma do pai.

Vindo em auxílio do chamado materno, apaziguava a angústia de lhe faltar algo como mãe, afastando a idéia de que não havia mais um pai, pois estava desamparada. Para Aristides, era como se o pai trabalhasse num lugar muito distante, tendo um emprego cansativo, que o ocupava integralmente, fazendo-o se estressar com frequência. Mas suas viagens duravam dias, às vezes semanas eternas.

Acontecia também que voltasse repentinamente, causando surpresa. Algumas vezes prolongava a temporada em casa, deixando sua presença pelos assovios dos ventos e vibrações das trovoadas no alicerce instável da casa. Aristides temia as trovoadas, pois sabia que seu pai voltara para tirar satisfação sobre seus erros mais íntimos.

Ele ficava estático, em êxtase, vulnerável. Mas esse temor também tinha outro lado, não menos devastador, pois só nessas condições que Aristides sente seu pai mais vivo do que nunca, doando seu amor.

Certa vez, estremecendo em sua cama, suando frio, teve intensos arrepios. O trepidar do corpo em movimentos ondulatórios e espasmódicos o consumia. Relutava contra a sensação de que a ira de seu pai batia à porta com tanta veemência, sem clemência, que a única barreira existente para conter a nefasta presença, a porta, fronteira do desconhecido, poderia ser derrubada. A ameaça, inominável, sem esse anteparo frágil, teria a crueldade de uma invasão sem um suplício marginal.

O pavor da tirania de seu pai se debatia à porta de sua casa. Esse fantasma, como toda criatura, teve sua criadora, pois foi produzido pela aflição da perda. O fantasma evocado no discurso de sua mãe, atravessou o moribundo corpo de Aristides, com dores cortantes, assim como os trovões rasgavam os céus de uma noite chuvosa.

A mãe, depois que a noite acabou, chegou ao seu quarto, e perplexa com a cena grotesca que se desenrolava diante de si, em desespero que seu filho sucumbisse à desgraça, foi em direção à janela, tentar abri-la. Diante de uma bela manhã de sol, com um cintilante céu azul, deixou que a balsâmica aragem depositasse seu sorriso no semblante angustiado de seu filho, entregue a um sono atormentado.

Aristides, de súbito, desperta. A imagem que se formou em seu campo de visão, foi mais onírica do que em seu próprio sonho. Aquela luz bruxuleante que incidiu em seu rosto, no ato da abertura da janela, por sua mãe, conseguiu fazê-lo acordar.

Mas ao descerrar suas pesadas pálpebras, observou que estava encarcerado num quarto úmido, escuro, e sem janelas nem portas. Não havia saída nem entrada. Estava encaixotado num cômodo vazio. Já não mais podia ouvir os trompetes e as cornetas da natureza. Os trovões revoltados, que anunciavam a presença do seu pai, silenciaram-se.

Não havia som, tudo ficou inaudível, inapreensível, opaco. O ar estava rarefeito, não existia nenhum canal, nenhuma passagem que sua esperança pudesse criar, como miragem. Sua respiração ficou cada vez mais escassa, impossível. O corpo de Aristides já não mais estremecia, não mais reverberava pela presença trovejante de seu pai.

Aristides estava plácido, perene. Não ouvia, não via, não falava. As marcas de seu pai desapareceram, e com elas, Aristides perdeu seu nome, virou uma matéria inerte.

Como um raio que corta a paisagem enegrecida por uma densa miragem, Aristides regressa ao ventre da terra mãe.

escrito por Alex Azevedo

quinta-feira, 4 de novembro de 2010

Tempos de Paz

Em minhas reminiscências, durante a leitura de um poema, deparei-me com uma voluptuosa e singela cena da peça teatral “Novas Diretrizes em Tempos de Paz”, do autor Bosco Brasil. Esta peça foi magistralmente adaptada para o cinema com o título “Tempos de Paz”, dirigido por Daniel Filho, com o ator Dan Stulbach como protagonista.

Reportando-me ao filme, recordei-me da intensa vibração e autêntica emoção expressas em uma das falas do imigrante Clausewitz, personagem interpretado pelo Dan. Clause viajou da Polônia para o Brasil, durante os “tempos de paz”, no final da segunda grande guerra. O Brasil vivia a expectativa de novas diretrizes para a liberação da imigração, filtrando a entrada e a saída pela vigilância da polícia política. Apenas com a obtenção de um salvo-conduto, que um imigrante poderia permanecer em terras brasileiras, e não ser automaticamente preso e deportado.

Arrasado pela triste pintura do holocausto, que tingiu a arte européia com uma mancha de sangue tão penetrante que se fixou na alma artística, Clause, um ex-ator apaixonado pelos palcos, mas impossibilitado de encenar a vida na sua língua materna, viaja para o Brasil em busca de recomeçar numa outra língua. Língua exótica, lusófona, da brandura infantil, da primitiva harmonia silvícola, do sibilar de uivos e ventos libertos do trágico grilhão do genocídio nazista.

Chegando ao território brasileiro, enfrenta a resistência de um país marcado por outro tipo de devastação, o de um Estado totalitário, torturado, pela ditadura varguista.

Clause, acreditando no recomeço como agricultor, interrogado pela falta de calos em suas mãos, apostava na recriação de uma vida amargurada pela guerra, mas sempre dedicada às artes cênicas, a mexer com os sentimentos mais recônditos de uma platéia ávida pela negação da dor.

Talvez Clause sustentasse a convicção no lema nacional que em terras tupiniquins, “em se plantando, tudo dá”. Acreditava que a terra brasileira, falada, cantada, amada em português, derramaria sua seiva encantada nos brotos da esperança, fazendo crescer uma próspera vegetação para alimentar os desesperançosos sobreviventes de uma guerra falada em alemão. Mas Clause não queria acreditar que a musicalidade da língua portuguesa, em sua fantasia de criança, também transmitia o silêncio da dor e do choro. Não devemos esquecer, que a palavra “witz” em alemão, de Clausewitz, significa um dito espirituoso, pilhéria, chiste. Onde está a alegria em um humor rasgado pelos espinhos do flagelo, de uma personagem cuja função é fazer rir, chorar, sentir?

Uma das partes mais belas do filme é quando Clause, com a inocência cristalina de sua crença, e com a farpa transformadora da arte, confessa que foi movido pela ideia de que a língua portuguesa é a língua com a qual os pássaros cantam e as flores nascem. Língua com a qual o cheiro ímpar de uma terra oprimida, regada pela chuva fértil, é traduzido, acariciando a audição.

Clause negava a possibilidade de ferir ou ser ferido com a língua portuguesa. Uma língua com a qual não se poderia pensar, sentir, nem falar da guerra. Pois somente uma língua feita pela pena branca da paz.

O que poderia resultar em melancólica desilusão, por saber que a morte é um impulso inerente ao homem, e não ao seu idioma, para convencer que faria o rígido e insensível interrogador da alfândega chorar, Clause convoca as potências afetivas que só as artes possibilitam, e encena uma belíssima declamação poética.

O interrogador chora. Todavia, sabendo que a história contada era “falsa”, fictícia, carecendo de fatos reais, questiona Clause com veemência. Clausewitz afirma então, que sua encenação, embora não apontasse para algo que aconteceu de fato, também não era irreal. Era Teatro!

Percebendo que o teatro foi capaz de emocionar um dos homens mais frios e embotados, redescobre a função do ator, tendo a prova crucial que as potências vitais da arte não morreram junto com a devastação da língua materna, que sempre morre para ressuscitar.

Foi essa lágrima que escorreu da frieza de um rosto congelado de um ex-torturador, do interrogador da alfândega, que pôde germinar a agricultura tão almejada pelo Clause. A condição para que a lágrima brotasse e nutrisse a terra, era tão somente a função do teatro. Função de afetar, amar, emocionar. Uma vibração intensiva, não marcada pela linearidade estéril da razão, pois desenhada nas silhuetas e meandros da explosão eloqüente dos afetos inomináveis.

Clause enfim descobre que o verdadeiro agricultor é o ator, em sua função de emocionar, fertilizando, semeando e colhendo os frutos em qualquer língua falada, mesmo num trágico pós-guerra, nos “tempos de paz”.

Texto escrito por Alex Azevedo.

Diz, curso! Qual o curso?

Fico surpreso, e até com medo de ser também virado ao avesso pelo poder de fixação dos discursos eleitos como hegemônicos. Na origem etimológica do verbete “patológico”, que a medicina incorporou em sua nomenclatura como sinônimo de doença, “pathos” significa, em grego, paixão, afeto. Então, pathos logos é apenas uma lógica afetiva, uma lógica do apaixonamento. Pático, patético, passional... Claro que na razão grega, a paixão prefigurava um entorpecimento da capacidade humana de liberdade (não esquecendo que a democracia grega foi esculpida pela escravidão).

A palavra estética, por exemplo, não é um ideal do belo, mas sim apenas o sublime da manutenção e transformação da vida. Estética vem de “estesia”, que é o oposto de anestesia, essa sim, apesar de útil nas cirurgias, um vilão do entorpecimento da alma, porta bandeira da insensibilidade humana.

Outra, que não chega a ser vítima das deturpações, é “poiésis”. Como “poiésis” significa a potencialidade do existir, a mutação cotidiana que todo, sem exceção, exemplar de ser humano precisa para sobreviver nessa selva de pedra, faz do mais matuto indivíduo, que não se afogou nas armadilhas da anestesia, um poeta nato.

Penso que a morte, que o discurso médico exorciza (mesmo se afirmando não religioso... Estranho!), vem antes da vida, pois é só com as potências da morte que a vida floresce. Eros é síntese. Tânatos (morte) desfaz os nós fixos que amortece, que o amor tece para que este seja reinventado e adquira multiplicidades nômades. O erotismo é a polimorfia da vida. Se Eros se fechar em fetiches, fixações e sínteses, deserotiza-se e encapsula a vida. A errância poética, desenraizada, erotiza a vida, pois o erógeno, não fixo, é inesgotável fonte de ficção.

escrito por Alex Azevedo

Dia a dia...

Quando eu ainda trabalhava na Pestalozzi, na região oceânica de Niterói, ao dirigir em horário turbulento, em que todos saem do trabalho e das escolas agitados, ávidos por chegarem aos seus “lares, doces lares”, parava num sinal fatídico, um dos mais movimentados e engarrafados, e, contraditoriamente, desfrutava de uma das mais paradisíacas paisagens da praia de São Francisco.
Invariavelmente, um cidadão de aparência caprichada, com a barba bem feita, cabelos cortados na moda, aproveitava-se do congestionamento para entregar, de carro em carro, um bilhete contendo algumas palavras.
Antes mesmo de ter o cuidado de ler (mesmo porque, na maioria das vezes nem me dava ao trabalho), imaginava se tratar de mais um vendedor ambulante, oferecendo balas, contando estorinhas tristes para sensibilizar os estressados motoristas, pedindo donativos às instituições de caridade. Vejo com estranheza tais iniciativas, pois com os motoristas naquele estado de humor, a única coisa que poderiam receber em troca, é um coice categórico de cavalo pangaré.
Mas aquele cidadão, bem afeiçoado, entregando bilhetes, ou colando-os nos vidros, em dias chuvosos, dos carros lacrados pelo ar condicionado, tinha algo de inusitado.
Li então os dizeres do bilhete, e me dei conta que havia uma única frase: “Preciso de emprego.”
Acredito, que, caso alguém se desse ao trabalho de ler aquela única frase, com os ânimos a flor da pele de um dia exaustivo, enfrentando aquele engarrafamento até suas casas para o merecido descanso, ou para mais uma jornada, agora de trabalho doméstico, responderia com desdém, ou faria um comentário jocoso, ou mandaria uma daquelas preciosidades: “Como o Brasil é miserável! Agora o povo pede emprego nos sinais! Onde iremos parar?”
Enfim, não importa, os comentários não criariam nenhuma mudança real, mas algo naquele cidadão foi mudando aos poucos.
Acompanhei sua trajetória por meses, sempre lá no carro, de vidros fechados, lendo os bilhetinhos, sempre os mesmos, lamentando, e nada fazendo a respeito para ajudá-lo. E, assim, sucessivamente, ia se repetindo.
Sua fisionomia foi aos poucos se embrutecendo. Cabelos desgrenhados. Barba cada vez maior, destratada, emaranhada e suja. De um elegante trabalhador desempregado, vencendo seu orgulho e, sem humilhar, pedindo emprego até com certa classe, começou a esfarrapar, alterando seu aspecto para uma face gélida, resignada e endurecida. Já nada mais pedia. Apenas caminhava por entre os carros.
Ontem, já não mais trabalhando na Pestalozzi, sem carro, andando a pé, vi o tal cidadão passando pelo meio fio de uma larga avenida, maltrapilho, esfarrapado, mais barbudo e sujo do que nunca. Já não mais pedia, apenas procurava algo de comer no lixo.
Descobriu, enfim, sua silenciosa identidade pelas ruas desse Brasil, o de mendigo.

Mendigo – Amém, eu digo! – Nem digo...

escrito por Alex Azevedo

Papo Furado de final de semana

Em um dos diálogos do filme nacional “Pequeno Dicionário Amoroso”, a personagem de Daniel Dantas, em um dos diálogos com seu novo, promissor e inspirado amor (resumindo: efêmero!), na tentativa de convencimento sobre a falida instituição do casamento, diz que o certo, como juramento no altar, seria não “que até a morte nos separe”, mas sim “que até o tédio nos separe”. Esse “até a morte nos separe”, enfatize a dimensão eterna do amor, imóvel e inesgotável. Isto é, Mito! Já a alternativa sugerida pela personagem do Daniel Dantas, “até que o tédio nos separe”, enfatiza a dimensão pós-moderna do amor, objeto descartável que não sobrevive ao desgaste, ao uso, como aparelhinho de orgasmo inutilizado após o motor pifar ou acabar a energia das bateriazinhas não recarregáveis. Mas acredito, que essa perspectiva atual do amor, pós moderno, do “até que o tédio nos separe”, não fica muito distante de um Mito, talvez a outra face da moeda, assim como a dimensão eterna do amor.

A culinária contemporânea não está comprometida com a necessidade fisiológica da alimentação, e sua função vital. Essa culinária pressupõe o aniquilamento da função biológica da digestão, elevando o processo do paladar à categoria da mais fina arte. Ninguém come. Agora, degusta! Comida não existe para encher barriga. Comida existe para incrementar, com habilidade de artesão, os temperos da libido. Em nenhuma época, a comida esteve mais associada ao ato de saborear o corpo do outro, volúpia canibalística, do que hoje. Comer e ser comido, puro êxtase! “Um a-mais” perdido nas digestões que nutrem a carne mas insatisfazem o corpo libidinoso. Ao comer, saboreamos as assinaturas dos grande chefs. Ao comer, conhecemos culturas impossíveis de serem desbravadas, mesmo se viajássemos até lá. Ao comer, percorremos mapas, compomos feitiços, aprofundamos sentimentos. Então, é dos quitutes e iguarias que o homem menos precisa para sobreviver. Pôs é só dos quitutes e iguarias, supérfluo, que o homem deleita um erotismo inútil socialmente, mas fruição indispensável da libido que o faz, tão somente, homem!

Esqueci de acrescentar uma curiosidade, talvez esclarecedora… A raiz da palavra “saber”, vem da palavra “sabor”. Às vezes, não conseguimos perceber o óbvio ululante. Nietzsche diz, apoiado em Spinoza, que o conhecimento é a mais alegre potencialidade do existir. E alegria, não corresponde à felicidade, muito pelo contrário. Podemos chorar, infelizes, e mesmo assim estarmos alegres. A angústia, quando não paralisa, faz da experiência de vazio, uma possibilidade de criação, de reinvenção, e isso é alegria. Voltando com Nietzsche… Ele fala que o herói niilista, cai no abismo chorando. E o herói trágico, alegre, cai no abismo rodopiando, dançando. Então, saber é sabor. Sabor é saber. O saber não se reduz a uma atividade mercantil, que consome o homem. O saber saboreia o homem, e é saboreado por este.

escrito por Alex Azevedo

Pedrazul


Estou aqui. Não sei o que sou.


Não falo. Não respiro. Não vejo... Mas sinto.


Não me mexo. Não saio do lugar.


Quando passam por mim, seres bípedes, falantes, exclamam: "Olha lá, mamãe, uma pedra azul!"


Pois é, segundo os bípedes falantes, sou uma pedra, e tenho cor, azul.


Então, acho que já deu para notar, tenho outra peculiaridade, além de ser sensível e azul, posso ouvir.


Ouço muito à minha volta. Já ouvi que sou uma pequenina pedra azul, no meio de centenas de outras pedras cinzas.


As crianças, quando vão em direção às outras pedras, procurando diversão, sentam-se nas grandes pedras cinzentas, e fazem-nas de cavalinhos. Em mim, não podem sentar, afinal, nem um pássaro distraído em minha superfície consegue pousar inteiramente, pois sou mínima.


Um dia, subitamente, jogaram-me dentro d'água. Foi um susto e tanto. Se outra coisa fosse, teria estremecido, mas como uma pedra, permaneci lá, imóvel internamente, mesmo deslizando no ar.


Estava deitada, despreocupada, cochilando, num final de tarde, com uma suave brisa balançando a poeira no meu corpo áspero, quando, de repente, algo me segurou e me ergueu. Aí... vupt... fui arremessada para o espelho d'água.


Antes desse inusitado episódio, ainda não havia sentido a textura do mar. Estranho... Parecia que uma bolha gelatinosa me tragava. Até que percebi, quando a primeira impressão passou, que flutuava.


Será que estou deslizando no ar? Era mar ou era ar?


Descobri, nessa experiência, que posso pensar. Minha mente virou redemoinho.


Fui jogada com fúria, para lá e para cá.
Enquanto meu corpo lentamente afundava, meu pensamento decolou, chegando às alturas.


Cada vez mais alto, mais rápido.


Meu corpo áspero e azul, cada vez menos peso tinha, isento de gravidade.


Naufragava serenamente...


Não mais ouvia as risadas das crianças deliciando-se com as grandes pedras cinzentas.


Estava no fundo do mar.


Ouvia apenas o silêncio crônico, um zumbido linear do sepultamento das conchas e mariscos.


As ondulações das profundezas roçavam em mim, deixando-me lisa e macia, não mais áspera como sempre fui, fora do mar.


Seres minúsculos depositaram, com a destreza de um alfaiate, tecidos bordados por algas marinhas. Do tecido, fez-se um manto com rendas finas e frágeis, até me cobrir, misturando-me com o fundo.


Na imensidão azul do mar, desapareci.


Uma paisagem homogênea como um tapete extenso, estirado nas profundezas, da qual eu fazia parte, revestiu a areia para recepcionar os habitantes cerimoniosos, não só peixes, como curiosos escafandristas.


Mas meu pensamento, que no ar estava, confundiu-se com o mar, em límpidas tonalidades de azul.


Logo ele que não tinha cor, invisível, neutro, ganhou colorido, nuances azuladas.


Agora, entre ar e mar, ar-mar, a (r) mar, perdi o discernimento do lugar em que poderia estar.


Onde estou? Sei lá... Se no azul do céu, ou no azul do mar...


Ar e mar não mais estavam separados, como diferença de duas palavras. São uma coisa só: M-ar!


Deslizo, deslizo, deslizo...


(...)

De súbito... vupt.... Voltei ao meu lugar... O céu não era ar. O ar não era mar.


Uma pedra cinzenta, mínima, repousava, na areia, no meio de grandes pedras azuis.

(...)


O céu azul, o mar azul, grandes pedras azuis, e eu, cinza...




CONTO ESCRITO por ALEX AZEVEDO DIAS.

quarta-feira, 3 de novembro de 2010

CaRaPiRa


Carapira é uma cidade que não tem lados. O dentro está fora e o fora nem dentro está. As ruas não têm calçadas. Os pedestres passam num asfalto letrado, e os carros; são discursos enevoados. Esse asfalto é usado apenas durante as ligeiras e embreagadas incursões da vida noturna.

Geralmente, sem regras e hierarquias, quando os sonhos inquietos, trabalhosos sonos, alfinetam a visão das gramáticas, amarrotam-se as bordas da fronha, onde as cabecinhas repousam com os olhos bem abertos. As ondas sonoras são o único meio energético que impulsiona o transporte dessa cidade. Cada passageiro se acomoda no veículo nomeado pelo fabricante como "palavra".

E até mesmo os coletivos, chamados de "frases", trafegam pelas vias da arte arterial. Tanto os particulares como os coletivos, variando de acordo com a condução, são inconfundíveis, mas confunde quem deles serve e faz sinal. A velocidade desses veículos depende do ritmo, cadência e compasso das canções entoadas nos meandros do amor.

As pausas das ondas sonoras, quando melodia se desenvolve, são o combustível do motor das palavras, circulando em direção sempre tortuosa ao destino incerto disparado pela ignição.

Na maioria das vezes, o destino esperado na partida, não é encontrado, impossível, permanece amolecido. Eles mudam de lugar em volúpias desconcertantes. Os que são observados antes do veículo-palavra começar seu movimento, já não mais existe. Durante a passagem pelas lacunas, uma melodia, combustível errante, sustenta-se.

Os habitantes dessa cidade não têm relógio, só têm pulso, o que resta. Pois o tempo deles não é contado. Às vezes não há noite, às vezes não há dia. O tempo está em consonância com a dança esvoaçante das palavras que cambaleiam. E as letras? Essas brincalhonas! Alteram suas posições, criando novos sentidos para o movimento dos veículos. Letras ondulantes, nos fonemas musicais e musicados.

O significado das palavras, mesmo com incansáveis travessuras das letrinhas, crianças arteiras, não está nelas como se fosse uma
imutável realidade. O significado das palavras está no percurso que elas realizam, embaladas pelo som do sentimento. Pois o que move esses veículos-palavras, como já foi falado, é o que não pode nunca parar de falar.

Ondas sonoras, os afetos que pulsam, saltitantes, latejantes. E que por pulsarem, não formam nem se transformam em outras palavras. Sem essas ondas circulares e vibrantes, impossíveis de sentido, pois é só sentir, as palavras perdem o seu ritmo, descolorem, envergam em pontas afiadas cravadas no obscuro, viram puras superfícies redondas, no lar soterradas e no ar, esquecidas.

O que não tem sem sentido em si, as vias pelas quais movimentam-se as palavras. Sons, desordens, ordens, ondas em dissimétricas avenidas, corredores abismados, palcos inusitados.

A vida em Carapira, não é um mar de rosas, acidentes acontecem. E na colisão entre as palavras em seus volantes desdobrados e divididos, por um desejo negado ou por força estranha que escapa, faz nascer, desse choque das vias eróticas na gramática, uma terceira palavra desamparada e órfã.

Essa palavra nascida pelo encontro vocálico com o rasgão semântico dos veículos desvairados, sem rumo, deve ser cuidada, desejada, para que o vocabulário da vida de Carapira não entre em extinção. E mesmo que Carapira se esvaia em lágrimas, é só por essas mesmas lágrimas que as palavras escorrem nas vias da emoção, combustíveis fluídicos num movimento que jamais cessará.

texto escrito por Alex Azevedo.